AS MARGENS DA ALEGRIA
Esta é a estória.
la um menino, com os Tios, passar dias no lugar
onde se construía a grande cidade. Era uma viagem
inventada no feliz; para ele, produzia-se em caso de
sonho. Saíam ainda com o escuro, o ar fino de cheiros
desconhecidos. A Mãe e o Pai vinham trazê-lo ao
aeroporto. A Tia e o Tio tomavam conta dele,
justinhamente. Sorria-se, saudava-se, todos se ouviam e
falavam. O avião era da Companhia, especial, de quatro
lugares. Respondiam-lhe a todas as perguntas, até o piloto
conversou com ele. O voo ia ser pouco mais de duas
horas. O menino fremia no acorçoo, alegre de se rir para
si, confortavelzinho, com um jeito de folha a cair. A vida
podia às vezes raiar numa verdade extraordinária. Mesmo
o afivelarem-lhe o cinto de segurança virava forte afago,
de proteção, e logo novo senso de esperança: ao não sabido, ao mais. Assim um crescer e desconter-se - certo
como o ato de respirar - o de fugir para o espaço em
branco. O Menino.
E as coisas vinham docemente de repente,
seguindo harmonia prévia, benfazeja, em movimentos
concordantes: as satisfações antes da consciência das
necessidades.[...]
O Menino tinha tudo de uma vez, e nada, ante a
mente. A luz e a longa-longa-longa nuvem. Chegavam.
Enquanto mal vacilava a manhã. A grande cidade
apenas começava a fazer-se, num semi-ermo, no
chapadão: a mágica monotonia, os diluídos ares. O campo
de pouso ficava a curta distância da casa - de madeira, sobre estações, quase penetrando na mata. O Menino via,
vislumbrava. Respirava muito. Ele queria poder ver ainda
mais vívido - as novas tantas coisas - o que para os seus
olhos se pronunciava. A morada era pequena, passava-se
logo à cozinha, e ao que não era bem quintal, antes breve
clareira, das árvores que não podem entrar dentro de
casa. Altas, cipós e orquideazinhas amarelas delas se
suspendiam. Dali, podiam sair índios, a onça, leão, lobos,
caçadores? Só sons. Um - e outros pássaros - com cantos
compridos. Isso foi o que abriu seu coração. Aqueles
passarinhos bebiam cachaça?
Senhor! Quando avistou o peru, no centro do
terreiro, entre a casa e as árvores da mata. O peru,
imperial, dava-lhe as costas, para receber sua admiração.
Estalara a cauda, e se entufou, fazendo roda: o rapar das
asas no chão - brusco, rijo, - se proclamara. Grugulejou!
sacudindo o abotoado grosso de bagas rubras; e a cabeça
possuía laivos de um azul-claro, raro, de céu e sanhaços;
e ele, completo, torneado, redondoso, todo em esferas e
planos, com reflexos de verdes metais em azul-e-preto - o
peru para sempre. Belo, belo! Tinha qualquer coisa de
calor, poder e flor, um transbordamento. Sua ríspida
grandeza tonitruante. Sua colorida empáfia. Satisfazia os
olhos, era de se tanger trombeta. Colérico, encachiado,
andando, gruziou outro gluglo. O Menino riu, com todo o
coração. Mas só bis-viu. Já o chamavam, para passeio.
[...]
Pensava no peru, quando voltavam. Só um pouco, para não gastar fora de hora o quente daquela lembrança, do mais importante, que estava guardado para ele, no
terreirinho das árvores bravas. Só pudera tê-lo um
instante, ligeiro, grande, demoroso. Haveria um, assim, em
cada casa, e de pessoa?
Tinham forne, servido o almoço, tomava-se
cerveja. O Tio, a Tia, os engenheiros. Da sala, não se
escutava o galhardo ralhar dele, seu grugulejo? Esta
grande cidade ia ser a mais levantada no mundo. Ele abria
leque, impante, explodido, se enfunava ... Mal comeu dos
doces, a marmelada, da terra, que se cortava bonita, o
perfume em açúcar e carne de flor. Saiu, sôfrego de o
rever.
Não viu: imediatamente. A mata é que era tão feia
de altura. E - onde? Só umas penas, restos, no chão. -
"Ué, se matou. Amanhã não é o dia-de-anos do doutor?"
Tudo perdia a eternidade e a certeza; num lufo, num
átimo, da gente as mais belas coisas se roubavam. Como
podiam? Por que tão de repente? Soubesse que ia
acontecer assim, ao menos teria olhado mais o peru -
aquele. O peru - seu desaparecer no espaço. Só no grão
nulo de um minuto, o Menino recebia em si um miligrama
de morte. Já o buscavam: - "Vamos aonde a grande
cidade vai ser, o lago..."
Cerreva-se, grave, num cansaço e numa renúncia
à curiosidade, para não passear com o pensamento. la.
Teria vergonha de falar do peru. Talvez não devesse, não
fosse direito ter por causa dele aquele doer, que põe e
punge, de dö, desgosto e desengano. Mas, matarem-no,
também, parecia-lhe obscuramente algum erro. Sentia-se
sempre mais cansado. Mal podia com o que agora lhe
mostravam, na circuntristeza: o um horizonte, homens no
trabalho de terraplenagem, os caminhões de cascalho, as
vagas árvores, um ribeirão de águas cinzentas, o velame-do-campo apenas uma planta desbotada, o encantamento
morto e sem pássaros, o ar cheio de poeira. Sua fadiga, de impedida emoção, formava um medo secreto:
descobria o possível de outras adversidades, no mundo
maquinal, no hostil espaço; e que entre o contentamento e
a desilusão, na balança infidelíssima, quase nada medeia.
Abaixava a cabecinha. [...]
De volta, não queria sair mais ao terreirinho, lá era
uma saudade abandonada, um incerto remorso. Nem ele
sabia bem. Seu pensamentozinho estava ainda na fase
hieroglífica. Mas foi, depois do jantar. E - a nem
espetaculosa surpresa - viu-o, suave inesperado: o peru, ali estava! Oh, não. Não era o mesmo. Menor, menos
muito. Tinha o coral, a arrecauda, a escova, o
grugrulhargrufo, mas faltava em sua penosa elegância o
recacho, o englobo, a beleza esticada do primeiro. Sua
chegada e presença, em todo o caso, um pouco
consolavam.
Tudo se amaciava na tristeza. Até o dia; isto era:
já o vir da noite. Porém, o subir da noitinha é sempre e
sofrido assim, em toda a parte. O silêncio safa de seus
guardados. O Menino, timorato, aquietava-se com o
próprio quebranto: alguma força, nele, trabalhava por
arraigar raízes, aumentar-lhe alma.
Mas o peru se adiantava até à beira da mata. Ali
adivinhara - o quê? Mal dava para se ver, no escurecendo.
E era a cabeça degolada do outro, atirada ao montura. O
Menino se doía e se entusiasmava.
Mas: não. Não por simpatia companheira e sentida
o peru até ali viera, certo, atraído. Movia-o um ódio.
Pegava de bicar, feroz, aquela outra cabeça. O Menino
não entendia. A mata, as mais negras árvores, eram um
montão demais; o mundo.
Trevava.
Voava, porém, a luzinha verde, vindo mesmo da
mata, o primeiro vaga-lume. Sim, o vaga-lume, sim, era
lindo! - tão pequenino, no ar, um instante só, alto, distante,
indo-se. Era, outra vez em quando, a Alegria.
ROSA, João Guimarães. Primeiras Estórias.
Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2001. (Texto adaptado)