Suponho, finalmente, que os ladrões de que falo não são
aqueles miseráveis, a quem a pobreza e vileza de sua fortuna condenou a este gênero de vida, porque a mesma sua
miséria ou escusa ou alivia o seu pecado. O ladrão que furta
para comer não vai nem leva ao Inferno: os que não só vão,
mas levam, de que eu trato, são os ladrões de maior calibre
e de mais alta esfera, os quais debaixo do mesmo nome e do
mesmo predicamento distingue muito bem São Basílio Magno. Não são só ladrões, diz o santo, os que cortam bolsas ou
espreitam os que se vão banhar, para lhes colher a roupa;
os ladrões que mais própria e dignamente merecem este título são aqueles a quem os reis encomendam os exércitos
e legiões, ou o governo das províncias, ou a administração
das cidades, os quais já com manha, já com força, roubam e
despojam os povos. Os outros ladrões roubam um homem,
estes roubam cidades e reinos; os outros furtam debaixo do
seu risco, estes sem temor, nem perigo; os outros, se furtam,
são enforcados, estes furtam e enforcam. Diógenes, que tudo
via com mais aguda vista que os outros homens, viu que uma
grande tropa de varas e ministros de justiça levavam a enforcar uns ladrões, e começou a bradar: “Lá vão os ladrões
grandes enforcar os pequenos.” Ditosa Grécia, que tinha tal
pregador! E mais ditosas as outras nações, se nelas não padecera a justiça as mesmas afrontas. Quantas vezes se viu
em Roma ir a enforcar um ladrão por ter furtado um carneiro,
e no mesmo dia ser levado em triunfo um cônsul, ou ditador,
por ter roubado uma província! E quantos ladrões teriam enforcado estes mesmos ladrões triunfantes? De um chamado
Seronato, disse com discreta contraposição Sidônio Apolinar:
“Seronato está sempre ocupado em duas coisas: em castigar furtos, e em os fazer.” Isto não era zelo de justiça, senão
inveja. Queria tirar os ladrões do mundo, para roubar ele só.
(Antônio Vieira. Essencial Padre Antônio Vieira, 2011. Adaptado.)