A despedideira
Há mulheres que querem que o seu homem seja o Sol. O meu quero-o nuvem. Há mulheres
que falam na voz do seu homem. O meu que seja calado e eu, nele, guarde meus silêncios. Para que
ele seja a minha voz quando Deus me pedir contas. [...]
Há muito tempo, me casei, também eu. Dispensei uma vida com esse alguém. Até que ele foi. Quando me deixou, já não me deixou a mim. Que eu já era outra, habilitada a ser ninguém. Às
vezes, contudo, ainda me adoece uma saudade desse homem. Lembro o tempo em que me encantei,
tudo era um princípio. Eu era nova, dezanovinha.
Quando ele me dirigiu palavra, nesse primeiríssimo dia, dei conta de que, até então, nunca
eu tinha falado com ninguém. O que havia feito era comerciar palavra, em negoceio de sentimento. Falar é outra coisa, é essa ponte sagrada em que ficamos pendentes, suspensos sobre
o abismo. Falar é outra coisa, vos digo. Dessa vez, com esse homem, na palavra eu me divinizei.
Como perfume em que perdesse minha própria aparência. Me solvia na fala, insubstanciada.
Lembro desse encontro, dessa primogênita primeira vez. Como se aquele momento fosse,
afinal, toda minha vida. Aconteceu aqui, neste mesmo pátio em que agora o espero. Era uma tarde boa para gente existir. O mundo cheirava a casa. O ar por ali parava. A brisa sem voar,
quase nidificava. Vez voz, os olhos e os olhares. Ele, em minha frente todo chegado como se a
sua única viagem tivesse sido para a minha vida.
No entanto, algo nele aparentava distância. [...]
Nesse mesmo pátio em que se estreava meu coração tudo iria, afinal, acabar. Porque ele anunciou tudo nesse poente. Que a paixão dele desbrilhara. Sem mais nada, nem outra mulher
havendo. Só isso: a murchidão do que, antes, florescia. [...] O único intruso era o tempo, que nossa
rotina deixara crescer e pesar.
[...] Deixem-me agora evocar, aos goles de lembrança. Enquanto espero que ele volte, de
novo, a este pátio. Recordar tudo, de uma só vez, me dá sofrimento. Por isso, vou lembrando aos poucos. Me debruço na varanda e a altura me tonteia. Quase vou na vertigem. Sabem o que
descobri? Que minha alma é feita de água. Não posso me debruçar tanto. Senão me entorno e
ainda morro vazia, sem gota.
Porque eu não sou por mim. Existo refletida, ardível em paixão. Como a lua: o que brilho é
por luz de outro. A luz desse amante, luz dançando na água. Mesmo que surja assim, agora, distante e fria. Cinza de um cigarro nunca fumado.
Pedi-lhe que viesse uma vez mais. Para que, de novo, se despeça de mim. E passados os anos,
tantos que já nem cabem na lembrança, eu ainda choro como se fosse a primeira despedida.
Porque esse adeus, só esse aceno é meu, todo inteiramente meu. Um adeus à medida de meu
amor.
[...] Toda a vida acreditei: amor é os dois se duplicarem em um. Mas hoje sinto: ser um é
ainda muito. De mais. Ambiciono, sim, ser o múltiplo de nada, Ninguém no plural.
Ninguéns.
(COUTO, Mia. O fio das missangas. São Paulo: Companhia das Letras, 2009. p.51-54.)