Amar
Que pode uma criatura senão,
entre criaturas, amar?
amar e esquecer, amar e malamar,
amar, desamar, amar?
sempre, e até de olhos vidrados, amar?
Que pode, pergunto, o ser amoroso,
sozinho, em rotação universal,
senão rodar também, e amar?
amar o que o mar traz à praia,
o que ele sepulta, e o que, na brisa marinha,
é sal, ou precisão de amor, ou simples ânsia?
Amar solenemente as palmas do deserto,
o que é entrega ou adoração expectante,
e amar o inóspito, o cru,
um vaso sem flor, um chão de ferro,
e o peito inerte, e a rua vista em sonho, e uma ave de rapina.
Este o nosso destino: amor sem conta,
distribuído pelas coisas pérfidas ou nulas,
doação ilimitada a uma completa ingratidão,
e na concha vazia do amor a procura medrosa,
paciente, de mais e mais amor.
Amar a nossa falta mesma de amor,
e na secura nossa amar a água implícita,
e o beijo tácito, e a sede infinita.
(ANDRADE, Carlos Drummond de. Claro enigma. São Paulo: Companhia das Letras. 2012. p. 26.)
Vocabulário:
Expectante: aquele que espera, que
observa.
Inerte: o que não possui movimento nem
se consegue movimentar; imóvel.
Inóspito: local sem condições para ser
habitado.
Pérfida: desleal; em que há traição,
falsidade.
Rapina: ato de roubar astuciosa e
violentamente.
Tácito: algo que é implícito ou que está
subentendido.