Entrega em domicílio
Não sei quando será, mas não deve demorar. O lugar?
Qualquer grande cidade brasileira. Noite. É cedo, mas não
se veem carros nas ruas nem gente nas calçadas. Só o que
se vê são motociclistas. Suas motocicletas têm caixas atrás,
para carregar os pedidos. São entregadores. Motoboys.
Teleboys. Eles se cruzam nas ruas vazias, em disparada.
Como os carros não saem mais à noite, e os motociclistas
não os respeitam mesmo, os faróis semafóricos não funcionam. O amarelo fica piscando a noite inteira, e nos cruzamentos a preferência é dos entregadores mais corajosos. Há
várias batidas e pelo menos um morto por noite. Mas o número de motociclistas nas ruas não para de crescer.
A população não sai mais de casa. Tudo é pedido pelo
telefone. Os restaurantes despediram seus garçons e trocaram por motoboys. Telegarçons. Se você quiser um jantar
fino à luz de velas, com vários pratos, sobremesa e vinho,
existem serviços de entrega para tudo. Um entrega os pratos
finos. Outro a sobremesa. Outro os vinhos. Outro a toalha de
linho, os talheres e as flores. E já há um de televelas.
Como as pessoas não saem à noite e ninguém mais vai
jantar na casa de ninguém, há uma cooperativa que se prontifica a mandar os próprios teleboys como convidados a jantares finos. A Telenós. Você especifica o tipo de conversa que
quer à mesa – mais ou menos intelectual, divertida, política,
variada etc. – e na hora marcada chegam os telecomensais,
no número e com o traje que você quiser. Eles comem, conversam, elogiam os anfitriões e vão embora ou, por um adicional, limpam a cozinha.
Os motoboys dominam a noite e desenvolveram uma cultura própria. Têm seu folclore, seus mitos, seus heróis.
Não sei quando será, mas não deve demorar.
(Luis Fernando Veríssimo [org. Adriana Falcão e Isabel Falcão],
“Entrega em domicílio”. Ironias do tempo, 2018. Adaptado)