Sem medo de errar
A atmosfera política do mês passado não foi a de um spa
nas montanhas. Era abrir o celular e vinha artilharia pesada,
agressões que abalavam o sistema nervoso. Cada um defendeu
sua saúde mental como pôde. A leitura sempre me salva nessa
hora, mas, ao invés de buscar algum livro inquietante, como
gosto, me socorri com Buda, já que Deus estava sobrecarregado. Atravessei os diaslendo “Eu posso estar errado”, de Björn
Natthiko Lindeblad, um monge sueco que faleceu recentemente,
aos 60 anos.
Aos 26, ele era um economista bem-sucedido, com muitos
ternos no armário e voos em classe executiva. Até que se fez a
pergunta de um milhão: É isso que eu quero mesmo? A fim de
buscar um sentido espiritual para sua vida, largou tudo e aterrissou com sua mochila num mosteiro na Tailândia. Ao se apresentar a um abade, escutou: “Pode ir para o dormitório. Se ainda
estiver aqui daqui a três dias, raspe a cabeça”.
Foi uma experiência radical de desapego, isolamento e
dúvidas – benditas dúvidas, que geram reflexões como a que
dá título ao livro: “Eu posso estar errado”. Quantas vezes a
gente diz isso para si mesmo? Duas a cada 100 anos.
Ele aconselha usar a frase como mantra para momentos
de tensão, situações de enfrentamento, discussões virulentas.
Pense: “eu posso estar errado”. A paz, subitamente, cai do céu.
Fui criada para acertar, para nunca me desviar do que é correto.
O que é ótimo, mas lá pelas tantas o acerto ganhou um status
exagerado, a coisa foi ficando militarizada, reprimiu a espontaneidade. Ora, errar faz parte do crescimento. As pessoas se
enganam, brigam, falam sem pensar, magoam, pedem desculpas, e assim, aos tropeços, vai se construindo uma identidade
mais verdadeira, que se reconhece complexa, não perfeita.
Ninguém sabe tudo, ninguém acerta o tempo todo – os
fortes são os primeiros a reconhecer. Já os fracos se apegam
a discursos laudatórios autorreferentes e a uma rigidez cuja
única função é disfarçar sua vulnerabilidade. Se declaram
acima dos mortais e ficam lá no topo, sozinhos. Este é o
isolamento fatal.
Não sou rigorosa com os outros, mas comigo sempre
fui tirana, não me permitia falhar. Ainda me permito pouco:
sou exemplar cumpridora de tarefas, atenta, educada e tudo
o mais que se preza. Mas erro feio – comigo – ao não relaxar
diante de eventuais vacilos e por me exigir o que não exijo
de ninguém. Lidar com o erro de forma tranquila nos torna
pessoas menos obsessivas, portanto, menos chatas, o que é
uma contribuição para a paz mundial.
Então, vamos em frente buscando a eficiência possível,
mas aceitando que a perfeição é um delírio e que a nossa
verdade nem sempre bate com a verdade do outro. Fazer o
quê? Respirar fundo. Aqui mesmo, que a Tailândia é muito
longe.
(MEDEIROS, Martha. Sem medo de errar. Jornal O Globo, 2022.
Disponível em https://oglobo.globo.com/ela/martha-medeiros/
coluna/2022/11/sem-medo-de-errar.ghtml. Acesso em: 31/12/22.)