Outro dia uma vizinha mineira me disse que ia à catedral
da Sé para rezar pelos carteiros. Pensei que ela fosse rezar pelo
aumento dos salários dos carteiros, que estavam em greve. Mas
a razão da reza era mais grave.
Meu pai foi carteiro em Belo Horizonte, ela disse. Daqui
a cinco anos os carteiros vão perder o emprego para a internet.
Ainda recebo postais, eu disse. Recebi um de Cruzeiro do
Sul, outro de Zurique, um de Fez, dois de Belém. E vou receber
um envelope...
Seus postais e envelopes estão com os dias contados, interrompeu minha vizinha. Daqui a cinco anos você só vai receber
extrato bancário. Ou nem isso. Vão entupir seu computador com
postais eletrônicos. Por isso vou rezar por esses mensageiros
andarilhos em extinção.
Mensageiros andarilhos em extinção...
Agora, ao ver um carteiro na calçada, a frase da minha vizinha piedosa me vem à mente. Não sei se os postais, as cartas
e os carteiros vão sumir. Sei que a amizade está ficando virtual
demais. Temo que os amigos desapareçam, já nem ouço a voz de
alguns deles, nem ao telefone. Porque ver e abraçar um amigo
tornou-se uma coisa complicada, quase uma façanha numa cidade
cujos moradores só se deslocam com rapidez por baixo da terra.
E há poucas estações de metrô numa metrópole do tamanho de
São Paulo. Uma mensagem eletrônica é um contato muito mais
rápido, quase instantâneo. Mas será mais humano? (...)
Mas devo à internet o contato com uma amiga espanhola, que
não via desde o século passado. Ela me enviou uma mensagem
em catalão, e recordou a brincadeira que eu fazia sobre sua língua
materna: muitas palavras catalãs hesitavam em terminar ou não
terminavam totalmente, palavras que parecem desprezar o som
final, nasalizado, tão forte em outras línguas românicas.
Reatamos pela internet uma amizade interrompida há quase
30 anos, e na longa carta virtual lembrou passagens da nossa vida
no bairro de Gracia, onde dividíamos um apartamento em frente
ao pequeno teatro Lliure, que encenava as melhores dramaturgias
de Barcelona.(...)
Carmen, minha amiga espanhola, revelou que havia encontrado um caderno branco, agora manchado pelo tempo: meu diário
catalão, onde registrara minhas andanças por vários lugares da
Espanha.
Já dava esse diário por perdido, que é o destino das palavras
de muitos diários: pura perdição. Agora esse achado da minha
amiga voará de Barcelona até São Paulo num envelope que um
mensageiro andarilho me entregará antes de perder seu emprego
para a internet. Às vezes um mero acaso pode extraviar envelopes,
mas espero que dessa vez o correio não seja “el correo del azar”.
(Milton Hatoum, O Estado de S.Paulo, 16.10.2009. Adaptado)