Nossa relação com os animais repete, de maneira
invertida, os cuidados que recebemos na primeira infância.
Nós também fomos, no início, dependentes, desamparados
e estávamos nas mãos de uma figura prestativa e generosa,
mas que tinha todo poder sobre nós. Nossa capacidade de
sentir piedade vem daí. A irresistível combinação de piedade,
simpatia e acolhimento que a imagem de um animal fofinho
desperta em nós, também. Contudo, esse é um amor de baixa
qualidade e de grande aptidão à dispersão quando falamos em
um projeto de longo prazo. Animais de estimação são como
filhos. Mas filhos que não crescem, não resistem para ir à
escola, não reclamam por autonomias adolescentes nem vão
embora para a faculdade e se casam, deixando-nos para trás.
Com os animais de estimação cada um revive a forma
de amar e ser amado que Freud descreveu como narcisismo.
Nele, confunde-se o amar o outro e o amar-se a si mesmo
através do outro. E muitas vezes essa confusão se infiltra e
atrapalha decisivamente a vida dos casais. Quando alguém
declara que ama os cães a ponto de ter dois ou sete deles
em casa, isso não representa nenhuma contradição com o
ato de maltratá-los. Tudo depende da qualidade do laço que
se estabelece nesse amor.
Quando amamos nossos cães, nossos filhos ou nossas
mulheres como a nós mesmos, podemos chegar a maltratá-los
da pior maneira. Daí a importância de amar o outro conferindo
algum espaço para o fato de que ele é um estranho, alguém
diferente de mim. O amor não é garantia nem de si mesmo
nem do desejo que ele deve habilitar. Isso vai aparecer na
relação com os animais, como uma espécie de raio x das
nossas formas de amar. Quem trata seus animais como uma
parte de si mesmo, humanizando-os realmente como filhos,
chamando-os de nenês, por exemplo, pode estar indicando
uma forma mais simples e narcísica de amar.
(Christian Dunker, Reinvenção da intimidade –
políticas do sofrimento cotidiano. Adaptado)