Texto III para responder à questão.
Papel aceita tudo
Papel aceita tudo e “papel”, nessa expressão surrada dos velhos jornalistas, ocupa aqui a vaga de qualquer espaço útil a mensagens (a tela do computador, o dial do rádio, o sinal da TV, a conversa no bar etc.).
Papel não tem superego, não faz autocrítica, não corrige o que colocamos nele (com o andar da tecnologia da correção automática, alguns dirão, “ainda não”). Da capa de revista que só faz panfletagem direitosa ao programa de auditório ruim, muita coisa é vomitada sem revisão ou segunda opinião.
A tecnologia da comunicação nos abriu horizontes.
Mas, de tanto ser usada para manter os privilégios de sem‐
pre, a informação parece antes confirmar a preconcepção
irrefletida, em vez de ampliar a visão das coisas. Mais do
que um gesto de precisão, a revisão (de nossos textos,
nossas ideias e certezas) é por isso um ato de carinho para
com os outros. É o manifesto verbal de nosso cuidado, do
zelo pela convivência, pela criação de um ambiente em
comum em que as pessoas possam instigar outras a serem
mais criativas e felizes. Não é exagero: o mundo insiste a
toda hora no cada um por si, somos mal pagos e trabalhamos demais, é preciso atenção para sentir se o que apre‐
sentamos de volta não é só uma nova contribuição de piora,
a confirmação de preconceitos, um reforço aos privilégios de
poucos.
Na Roma antiga, governantes nomeavam delatores (do
latim delatio, reportar, contar) para andar pelas ruas, ouvido
atento ao que as pessoas diziam deles, e rebater a onda,
lançando rumores que lhes fossem benéficos. Nero fez isso
quando acusado do incêndio de Roma (64 a.C.). Impopular,
foi acusado pelo episódio. Como só desmentir seria ineficaz,
mandou espalhar que os culpados eram cristãos – a Geni da
época, em quem todos jogavam pedras.
Nero inaugurou o oportunismo do veículo, até hoje em
uso. A vida brasileira tem mostrado que é preciso aprender
a detectar os sinais desse tipo de oportunismo. Afinal, qual‐
quer que seja a forma que usam para falar com a gente, ela
aceitará tudo.
(Luiz Costa Pereira Júnior. Língua Portuguesa. São Paulo: Segmento, julho/2013.)