O CORPO ESCRITO DA LITERATURA
A escrita se faz com o corpo, e dar sua pulsação,
seu ritmo pulslonal, sua respiração singular, sua rebeldia,
às vezes domada pela força da armadura da língua, pela
sintaxe, freios e ordenamentos. Assim, nunca são puras
ideias abstratas que se escrevem e por isso, quando se
lida com a escrita alheia do escritor ou do escrevente
comum, como leitor ou crítico, toca-se em textos, com as
mãos, com os olhos, com a pele. Tal gesto pode irritar
profundamente aquele que escreveu, como se seu corpo
sofresse uma agressão ou uma invasão Indevida, da qual
ele tem que se defender, sob o risco de se ver ferido por
um olhar ou mäo estranha. Por isso, aquele que escreve,
a todo momento, talvez tente se explicar, se suturar, na
tentativa de se preservar de um outro intrusivo, que fala de
um lugar que nem sempre é o da cumplicidade especular, obrigando a um dizer outro que ele - o que escreve -
recusa, desconhece ou simplesmente cala.
O escrever tem a ver com uma intimidade que, no
entanto, sempre se volta para fora, paradoxalmente se
mascarando e se desvelando, ao mesmo tempo. Dar, a
fugaz medida do texto, que o faz se dizer e se desdizer, no
palco mesmo da folha branca, onde ele se exibe, com
pudor, falso pudor, ou uma espécie de bravata exibicionista. Textos poéticos ou romanescos querem
agradar ou seduzir o incauto leitor com suas manhas e
artimanhas, prometendo e faltando à palavra dada, às
promessas de respostas. à avidez ingênua de quem
espera dele mais do que palavras, letras.
Assim, o texto fala e fala mais do que o autor
pretende, e não há como evitar essa rebeldia de palavras
que fogem de um ilusório comando, mesmo quando se
buscam recursos os mais variados, para domá-las, se
assim se pretende, no cárcere privado da sintaxe, das
normas, dos modelos, sonetos, tercetos ou a mais rígida
rima livre.
Porque as palavras são "palavras em pássaros" como afirma um personagem de João Gilberto Noll que se
diz dominado por elas, no ato mesmo da escrita, como se
elas escapassem de seus dedos que dedilham as teclas
da máquina, sem conseguir controlá-las.
Um dia, escrevi ou me escrevi: literatura são
palavras. Mas nem todas as palavras fazem literatura, a
não ser aquelas que trabalham no velho barro da língua,
laborando nele como quem forja alguma coisa tão
material, como com o cristal sonoro ou o som bruto de
cordas que esperam as mãos do violinista, para afiná-las
ou quebrá-las com som novo que possa arranhar nossos
ouvidos duros, rapidamente surdos aos velhos verbos
repetidos que ecoam sinistramente na velha casa da
escrita. [...]
A escrita não segura todos os riscos, todos os
pontos finais, mas alguma coisa ela faz, quando se
gastam todos os recursos do semblant, quando, de
repente, ela começa a se dizer sozinha, avizinhando-nos
do real, este insabido que fascina e nos deixa nus diante
de todos os leitores.
Talvez ar, nessa hora, surja um voyeurismo que
surpreenda o escritor, lá onde ele não se adivinhava, quando pode se desconhecer em suas palavras, estas que
saem de seu pobre teatro do quotidiano e o espreitam, no
chão mesmo da poesia, na sua letra, ao pé da letra.
Ela, a poesia, vem, sem suas vestimentas-textos,
que, de tão decorados, se põem a despir-se. pois todo ator
ou atriz tem sua hora de cansaço, quando sua fala já não
fala, quando uma brusca opacidade faz que ele ou ela
tropece as palavras e as gagueje, num hiato.
Depois da luta, a luta mais vã de Drummond, fica-se sabendo que ela - a luta - é de outra ordem e se
escreve com outras armas. Mas só se sabe isso depois de
liquefazer suas palavras-lutas, de passar por um estado
de ruptura do velho chão da gramática, da língua pátria.
Língua pátria necessária, mas que precisa ser
transformada em herança, para ser reescrita e relida,
agora, noutros tempos, sem que se deixe de trabalhar o
limo verde de seus vocábulos esquecidos no museu de
tudo. Tudo o que me diz ou nos diz na floresta de
símbolos onde nos perdermos, onde perdemos o rumo e o
prumo. Mas também onde inventamos outros itinerários,
com outras bússolas. no papel lívido, como disse a voz de
um escritor cujo nome esqueci, mas que me fala agora. Ou mesmo, escrevendo nessa outra tela, a dos nossos
fantasmas, bela ou temida janela. ou nessa outra, cujo
brilho ofusca, a do computador, que faz voar, correr nas
suas teclas as palavras-pássaros, sem pouso, sem pausa.
Palavras-pássaros do tempo-espaço que não se
deixam apagar nas letras empoeiradas das prateleiras de Babel, de Borges, sempre reescritas. Sempre renovadas e
reinventadas, que é para isso que serve a literatura.[...]
BRANDÃO, Ruth Silviano. A vida escrita.
Rio de Janeiro: 7 Letras, 2006. (Texto adaptado)