Falta amor no mundo, mas também falta interpretação de
texto*
Que me perdoem os analistas de funções, tabelas,
números complexos e logaritmos, mas desenvolvi uma
teoria baseada em nada além do que meus próprios olhos
e ouvidos vêm testemunhando há tempos: considerável
parte do desamor que paira hoje no mundo se deve à
incapacidade de interpretação de texto. Simi senhores. A
incompreensão da Língua tem deixado as línguas (e os
dedos frenéticos que navegam pelos teclados) mais
intolerantes, emburrecidos e inacreditavelmente loucos.
Talvez esse bizarro fenômeno se deva à carência
de ideologias e certezas, que fizeram Bauman (o
sociólogo da moda, salve, salve!) enxergar a "liquidez" da
modernidade e a fragilidade de referências. Talvez seja
apenas falta do que fazer e uma intensa carência de
reconhecimento nas mídias sociais. Ou quem sabe
Umberto Eco estivesse certo ao afirmar que as redes
sociais deram voz aos imbecis. "Normalmente, eles (os
imbecis) eram imediatamente calados, mas agora têm o
mesmo direito à palavra de um Prêmio Nobel." Viva a
democracia virtual!
Fato é que a imbecilidade se tem traduzido em
palavras vindas de mentes que não sabem
compreender... palavras! Eros versus Pasquale, Afrodite
versus Bilac e a falta de amor no mundo se reduziu a uma
simples. questão de semântica. Qualquer manifestação
minimamente opinativa e já tiram - sabe-se lá de que
cartola mágica uma interpretação maliciosa,
completamente descontextualizada e muitas vezes
motivada pela leitura de mero título ou pela escolha de
imagem ilustrativa.
Só que a falta de compreensão se estende para
além das redes virtuais. Basta que haja qualquer debate
numa mesa de bar e "Calma lá1 meu chapa, não foi isso
que eu disse...". "Você entendeu errado...", "Não foi isso
que eu quis dizer..." E, de repente, não se diferencia mais
quem não sabe falar de quem não sabe entender. O
quadro se torna insustentável quando se adicionam como
ingredientes hipérbole, metáfora e principalmente ironia
fina. Fina mesmo é a distância entre o soco e o infeliz
nariz daquele que não se faz compreender.
É claro que o praticante da incompreensão textual
jamais se entenderá como parte da percentagem de
analfabetos funcionais. Se as pesquisas apontam que
apenas 8% dos brasileiros entre 15 e 64 anos são
capazes de se expressar e de compreender plenamente,
ele estará no meio. Se fossem 2°Ai, ele estaria no meio. Se
apenas um único brasileiro fosse capaz de interpretar
texto, certamente seria ele. O drama da incompreensão é
que ela distorce a análise de si. Somos textos ambulantes,
afinal.
"Estou farto de todo lirismo que capitula ao que
quer que seja fora de si mesmo." disse Manuel Bandeira,
sem saber quel tanto tempo depois, estaria nadando de
braçada na (in)compreensão baseada em conteúdo
distorcido ou jamais dito por aquele que sofre as
consequências. Nunca se capitularam tantas frases fora
de seu contexto, Manuel.
Está faltando amor no mundo, mas disso pelo
menos todo mundo sabe. O que falta entender é que falta,
Prova: Amarela
Português, Inglês, Matemática e Ciências
prínclpalmente, interpretação de texto. E quem sabe o
mundo possa se amar mais quando todos realmente
falarem a mesma língua.
*Título tomado de empréstimo de Leonardo Sakamoto.
Lara Brenner. https://www.revistabula.com/6691-faltaamor-no-mundo-mas-tambem-falta-interpretacao-de-texto/
(acesso em 21 de outubro de 2019 - adaptado)