TEXTO 01
Leia o texto abaixo e responda à questão.
Felicidade clandestina
Ela era gorda, baixa, sardenta e de cabelos
excessivamente crespos, meio arruivados. Tinha um busto
enorme; enquanto nós todas ainda éramos achatadas.
Como se não bastasse, enchia os dois bolsos da blusa,
por cima do busto, com balas. Mas possuía o que
qualquer criança devoradora de histórias gostaria de ter:
um pai dono de livraria.
Pouco aproveitava. E nós menos ainda: até para
aniversário, em vez de pelo menos um livrinho barato, ela
nos entregava em mãos um cartão-postal da loja do pai.
Ainda por cima era de paisagem do Recife mesmo, onde
morávamos, com suas pontes mais do que vistas. Atrás
escrevia com letra bordadíssima palavras como "data
natalícia" e "saudade".
Mas que talento tinha para a crueldade. Ela toda
era pura vingança, chupando balas com barulho. Como
essa menina devia nos odiar, nós que éramos
imperdoavelmente bonitinhas, esguias, altinhas, de
cabelos livres. Comigo exerceu com calma ferocidade o
seu sadismo. Na minha ânsia de ler, eu nem notava as
humilhações a que ela me submetia: continuava a
implorar-lhe emprestados os livros que ela não lia.
Até que veio para ela o magno dia de começar a
exercer sobre mim uma tortura chinesa. Como
casualmente, informou-me que possuía “As reinações de
Narizinho’’, de Monteiro Lobato.
Era um livro grosso, meu Deus, era um livro para
se ficar vivendo com ele, comendo-o, dormindo-o. E
completamente acima de minhas posses. Disse-me que
eu passasse peia sua casa no dia seguinte e que ela o
emprestaria.
Até o dia seguinte eu me transformei na própria
esperança da alegria: eu não vivia, eu nadava devagar
num mar suave, as ondas me levavam e me traziam.
No dia seguinte fui à sua casa, literalmente
correndo. Ela não morava num sobrado como eu, e sim
numa casa. Não me mandou entrar. Olhando bem para
meus olhos, disse-me que havia emprestado o livro a
outra menina, e que eu voltasse no dia seguinte para
buscá-lo. Boquiaberta, saí devagar, mas em breve a
esperança de novo me tomava toda e eu recomeçava na
rua a andar pulando, que era o meu modo estranho de
andar pelas ruas de Recife. Dessa vez nem caí: guiava-me a promessa do livro, o dia seguinte viria, os dias
seguintes seriam mais tarde a minha vida inteira, o amor
pelo mundo me esperava, andei pulando pelas ruas como
sempre e não caí nenhuma vez.
Mas não ficou simplesmente nisso. O plano
secreto da filha do dono de livraria era tranquilo e
diabólico. No dia seguinte lá estava eu à porta de sua
casa, com um sorriso e o coração batendo. Para ouvir a
resposta calma: o livro ainda não estava em seu poder,
que eu voltasse no dia seguinte. Mal sabia eu como mais
tarde, no decorrer da vida, o drama do "dia seguinte" com
ela ia se repetir com meu coração batendo.
E assim continuou. Quanto tempo? Não sei. Ela
sabia que era tempo indefinido, enquanto o fel não
escorresse todo de seu corpo grosso. Eu já começara a adivinhar que ela me escolhera para eu sofrer, às vezes
adivinho. Mas, adivinhando mesmo, às vezes aceito: como
se quem quer me fazer sofrer esteja precisando
danadamente que eu sofra.
Quanto tempo? Eu ia diariamente à sua casa, sem
faltar um dia sequer. Às vezes ela dizia: pois o livro esteve
comigo ontem de tarde, mas você só veio de manhã, de
modo que o emprestei a outra menina. E eu, que não era
dada a olheiras, sentia as olheiras se cavando sob os
meus olhos espantados.
Até que um dia, quando eu estava à porta de sua
casa, ouvindo humilde e silenciosa a sua recusa, apareceu
sua mãe. Ela devia estar estranhando a aparição muda e
diária daquela menina à porta de sua casa. Pediu
explicações a nós duas. Houve uma confusão silenciosa,
entrecortada de palavras pouco elucidativas. A senhora
achava cada vez mais estranho o fato de não estar
entendendo. Até que essa mãe boa entendeu. Voltou-se
para a filha e com enorme surpresa exclamou: mas este
livro nunca saiu daqui de casa e você nem quis ler!
E o pior para essa mulher não era a descoberta do
que acontecia. Devia ser a descoberta horrorizada da filha
que tinha. Ela nos espiava em silêncio: a potência de
perversidade de sua filha desconhecida e a menina loura
em pé à porta, exausta, ao vento das ruas de Recife. Foi
então que, finalmente se refazendo, disse firme e calma
para a filha: você vai emprestar o livro agora mesmo. E
para mim: "E você fica com o livro por quanto tempo
quiser." Entendem? Valia mais do que me dar o livro: "peio
tempo que eu quisesse" é tudo o que uma pessoa, grande
ou pequena, pode ter a ousadia de querer.
Como contar o que se seguiu? Eu estava
estonteada, e assim recebi o livro na mão. Acho que eu
não disse nada. Peguei o livro. Não, não saí pulando como
sempre. Saí andando bem devagar. Sei que segurava o
livro grosso com as duas mãos, comprimindo-o contra o
peito. Quanto tempo levei até chegar em casa, também
pouco importa. Meu peito estava quente, meu coração
pensativo.
Chegando em casa, não comecei a ler. Fingia que
não o tinha, só para depois ter o susto de o ter. Horas
depois abri-o, li algumas linhas maravilhosas, fechei-o de
novo, fui passear pela casa, adiei ainda mais indo comer
pão com manteiga, fingi que não sabia onde guardara o
livro, achava-o, abria-o por alguns instantes. Criava as
mais falsas dificuldades para aquela coisa clandestina que
era a felicidade. A felicidade sempre iria ser clandestina
para mim. Parece que eu já pressentia. Como demorei! Eu
vivia no ar... Havia orgulho e pudor em mim. Eu era uma
rainha delicada.
Às vezes sentava-me na rede, balançando-me
com o livro aberto no colo, sem tocá-lo, em êxtase
puríssimo.
Não era mais uma menina com um livro: era uma
mulher com o seu amante.
LISPECTOR, Clarice. O Primeiro Beijo. São Paulo: Ed. Ática, 1996