Leia o trecho do conto “O Peru de Natal" .
“O nosso primeiro Natal em família, depois da morte de meu pai, acontecida cinco meses antes, foi
de consequências decisivas para a felicidade familiar. Nós sempre fôramos familiarmente felizes, nesse
sentido muito abstrato da felicidade: gente honesta, sem crimes, lar sem brigas internas nem graves
dificuldades econômicas. Mas, devido principalmente à natureza cinzenta de meu pai, ser desprovido de
qualquer lirismo, duma exemplaridade incapaz, acolchoado no medíocre, sempre nos faltara aquele aproveitamento
da vida, aquele gosto pelas felicidades materiais, um vinho bom, uma estação de águas,
aquisição de geladeira, coisas assim. Meu pai fora de um bom errado, quase dramático, o puro-sangue
dos desmancha-prazeres.
Morreu meu pai sentimos muito, etc. Quando chegamos nas proximidades do Natal, eu já estava
que não podia mais pra afastar aquela memória obstruente do morto, que parecia ter sistematizado pra
sempre a obrigação de uma lembrança dolorosa em cada almoço, em cada gesto da família... A dor já
estava sendo cultivada pelas aparências, e eu, que sempre gostara apenas regularmente de meu pai,
mais por instinto de filho que por espontaneidade de amor, me via a ponto de aborrecer o bom do morto.
Foi decerto por isso que me nasceu, esta sim, espontaneamente, a ideia de fazer uma das minhas
chamadas “loucuras". Essa fora, aliás, e desde muito cedo, a minha esplêndida conquista contra o
ambiente familiar. Desde cedinho, desde os tempos de ginásio, em que arranjava regularmente uma
reprovação todos os anos; desde o beijo às escondidas, numa prima, aos dez anos...eu consegui no
reformatório do lar e vasta parentagem, a fama conciliatória de “louco". “É doido coitado!" (…)
Foi lembrando isso que arrebentei com uma das minhas “loucuras":
– Bom, no Natal, quero comer peru.
Houve um desses espantos que ninguém não imagina."