Para responder a questão, considere o texto a seguir:
Pontes entre os muros
Há quem queira ensinar padre-nosso ao vigário. Mas isso não se compara a querer
ensinar ao papa sobre a vida de Cristo. “Jesus viveu aqui, nesta terra. Ele falava
hebraico”, garantiu o primeiro-ministro Benjamin Netanyahu a Jorge Bergoglio,
em Jerusalém. “Aramaico”, corrigiu imediatamente o pontífice. “Falava aramaico,
mas sabia hebraico”, insistiu Bibi.
Pode parecer um pormenor irrelevante, mas ajuda a entender por que essa visita
aparentemente inócua foi sentida em Israel como uma ameaça. A cena mais emblemática
foi o papa descer do carro sem aviso, na Cisjordânia, para rezar junto ao
Muro da Separação, ou “Muro da Vergonha”, construído por Israel para concretizar
fisicamente a exclusão do povo palestino. Bem debaixo de pichações nas quais
se lia “Palestina Livre”, “Papa, precisamos de alguém para falar sobre justiça”, e
“Belém parece o Gueto de Varsóvia”.
Foi óbvia a alusão ao “Muro das Lamentações” de Jerusalém, tido como vestígio
do Templo destruído por Tito (é um muro de arrimo acrescentado por Herodes),
onde durante milênios peregrinos foram suplicar pela vinda do Messias, pelo retomo
dos judeus da Diáspora, pela reconstrução do templo e do idealizado reino
de Israel. Sem usar palavras, o líder católico equiparou os hebreus do passado aos
palestinos do presente e assinalou ao mundo em geral e a Israel em particular que
o ponto de vista de Tel-Avivi sobre a história é um entre outros e os judeus não
são tão diferentes dos árabes. Nem dos romanos. [...]
Mais tarde, do lado israelense da fronteira, o papa Francisco não se negou a visitar
o Muro das Lamentações original antes de subir às mesquitas do Morro do Templo
e aceitou a exigência de Netanyahu de repetir seu gesto perto do muro do
Memorial das Vítimas (judaicas) dos Ataques Terroristas, em Jerusalém. Essas
cenas não tiveram o mesmo impacto [...]. A questão não é tomar partido pelo Estado
da Palestina (oficialmente reconhecido pelo Vaticano), e sim relativizar a
narrativa sionista na qual Israel insiste, apesar de se tomar cada vez mais insustentável
no cenário internacional.
O primeiro-ministro, vale ressaltar, não representa o sionismo mais extremista.
Está sob pressão dos radicais de seu próprio partido e dos aliados ainda mais à
direita de sua coalizão, especialmente o chanceler Avigdor Lieberman e o ministro
da Economia, Naftali Bennett, representante dos colonos do partido Lar Judeu,
que exige a anexação da Cisjordânia. [...]
O papa ofereceu “sua casa”, o Vaticano, para um encontro entre o presidente palestino
Mahmoud Abbas e o presidente israelense Shimon Peres. Ambos aceitaram,
mas o desafio continua a ser encontrar uma linguagem comum. Não haverá
saída da embrulhada do Oriente Médio enquanto os israelenses se fecharem aos
palestinos e ao mundo tanto com muralhas físicas quanto com as de seus mitos e
preconceitos. O chefe da Igreja Católica agiu corretamente ao enfatizar o quanto
esses muros são lamentáveis e tomar sua visita a mais ecumênica possível. [...]
Desta vez, fez jus ao primeiro título de seu cargo, herdado dos sumos sacerdotes e
imperadores de Roma e muito mais velho que o próprio cristianismo: Pontifex,
“fazedor de pontes”. Ou pelo menos tentou.
(Antônio Luiz M. C. Costa, CARTA CAPITAL, 802, 04/06/2014)