O espelho
João Guimarães Rosa (texto adaptado)
Se quer seguir-me, narro-lhe; não uma aventura, mas
experiência, a que me induziram, alternadamente, séries de
raciocínios e intuições. Tomou-me tempo, desânimos,
esforços.
— Foi num lavatório de edifício público, por acaso. Eu
era moço, comigo contente, vaidoso. Descuidado, avistei...
Explico-lhe: dois espelhos — um de parede, o outro de porta
lateral, aberta em ângulo propício — faziam jogo. E o que
enxerguei, por instante, foi uma figura, perfil humano. Deu-me náusea, aquele homem, causava-me ódio e susto. E era —
logo descobri... era eu, mesmo!
Desde aí, comecei a procurar-me — ao eu por detrás de
mim — à tona dos espelhos, em sua funda lâmina. Concluí
que, interpenetrando-se no disfarce do rosto externo diversas
componentes, meu problema seria o de submetê-las a um
bloqueio “visual”, desde as mais rudimentares. Tomei o
elemento animal, para começo. Meu sósia inferior na escala
era — a onça. E, então, eu teria que aprender a não ver, no
espelho, os traços que em mim recordavam o grande felino.
Atirei-me a tanto.
Prossegui... O elemento hereditário — as parecenças
com os pais e avós — que são também, nos nossos rostos, um
lastro evolutivo residual. E, em seguida, o que se deveria ao
contágio das paixões, manifestadas ou latentes, o que
ressaltava das desordenadas pressões psicológicas transitórias.
E, ainda, o que, em nossas caras, materializa ideias e
sugestões de outrem; e os efêmeros interesses...
Um dia... Simplesmente lhe digo que me olhei num
espelho e não me vi. Não vi nada. Só o campo, liso. Eu não
tinha formas, rosto? Apalpei-me, em muito... Aturdi-me, a
ponto de me deixar cair numa poltrona. Voltei a querer
encarar-me. Nada. Eu não via os meus olhos... Não haveria
em mim uma existência central, pessoal, autônoma? Seria eu
um... desalmado?
Pois foi que, mais tarde, anos, ao fim de uma ocasião de
sofrimentos grandes, de novo me defrontei — não rosto a
rosto. O espelho mostrou-me. Que luzinha, aquela, que de
mim se emitia, para deter-se acolá, refletida, surpresa? Sim,
vi, a mim mesmo, mal emergindo... E era não mais que
rostinho de menino, de menos-que-menino, só. Só... E o
julgamento-problema: “Você chegou a existir?” [...]
Primeiras estórias - Nova Fronteira, 2001.