Texto CB1A1-II
De um dia para o outro, parecia que a peste se tinha
instalado confortavelmente no seu paroxismo e incorporava aos
seus assassinatos diários a precisão e a regularidade de um bom
funcionário. Em princípio, segundo a opinião de pessoas
competentes, era bom sinal. O gráfico da evolução da peste, com
sua subida incessante, parecia inteiramente reconfortante ao
Dr. Richard. Daqui em diante, só poderia decrescer. E ele
atribuía o mérito disso ao novo soro de Gastei, que acabava de
obter, com efeito, alguns êxitos imprevistos. As formas
pulmonares da infecção, que já se tinham manifestado,
multiplicavam-se agora nos quatro cantos da cidade. O contágio
tinha agora probabilidade de ser maior, com essa nova forma de
epidemia. Na realidade, as opiniões dos especialistas tinham
sempre sido contraditórias sobre esse ponto. Havia, no entanto,
outros motivos de inquietação em consequência das dificuldades
de abastecimento, que cresciam com o tempo. A especulação
interviera e oferecia, a preços fabulosos, os gêneros de primeira
necessidade que faltavam no mercado habitual. As famílias
pobres viam-se, assim, em uma situação muito difícil. A peste,
que, pela imparcialidade eficaz com que exercia seu ministério,
deveria ter reforçado a igualdade entre nossos concidadãos pelo
jogo normal dos egoísmos, tornava, ao contrário, mais acentuado
no coração dos homens o sentimento da injustiça. Restava, é bem
verdade, a igualdade irrepreensível da morte, mas, esta, ninguém
queria. Os pobres que sofriam de fome pensavam, com mais
nostalgia ainda, nas cidades e nos campos vizinhos, onde a vida
era livre e o pão não era caro. Difundira-se uma divisa que se lia,
às vezes, nos muros ou se gritava à passagem do prefeito: “Pão
ou ar”. Essa fórmula irônica dava o alarme de certas
manifestações logo reprimidas, mas cuja gravidade todos
percebiam.
Albert Camus. A peste. Internet: (com adaptações).