Texto 01
Nem toda zona de conforto é ruim
Um dia, não sei quando nem sei quem, alguém inventou em algum lugar que, para conseguir qualquer
coisa na vida, é preciso “sair da zona de conforto”. A frase ganhou o mundo e se tornou um símbolo do
anticonformismo, do esforço desmedido, da superação pessoal e profissional e até do empreendedorismo. Segundo
sua lógica peculiar, só entra no reino dos céus quem sai da zona de conforto.
Como todo símbolo, esse clichê também caiu na armadilha de encerrar uma verdade. E verdades
encerradas não se abrem para a saúde exuberante das dúvidas. Não são afeitas à liberdade infantil do pensamento.
De tão óbvia, uma verdade absoluta não admite questionamentos.
É claro que toda conquista requer algum tipo de esforço, que todo sucesso é resultado do empenho de
cada um, de sua capacidade de vencer dificuldades. Ninguém contesta que o movimento gera força e, com força, a
gente cresce. Inegável que ficar parado, esperando cair do céu o que se deseja, nunca vai dar em nada. Daí
a condenar o conforto como algo de que se deve fugir, classificá-lo como uma zona fantasma onde se arrasta uma
comunidade de preguiçososB Isso sempre me pareceu um pouquinho demais. Porque o significado de conforto não
pode ser reduzido àquele que vem do latim, da palavra cumfortare, vinda por sua vez de cum-fortis, de alívio da dor.
[...]
Essa tal zona de conforto, pegajosa e limitante, talvez traduza o que seja a suposta segurança da casa dos
pais, de onde uma hora os filhos devem sair para construírem suas próprias vidas, suas histórias, suas carreiras,
suas famílias. É o tal emprego que já não oferece mais nada além de mera subsistência e, por isso, gera angústia e
infelicidade. É o relacionamento amoroso que de amor já não tem mais nada. [...] O que se convencionou chamar de
“zona de conforto” é todo canto físico e mental dos quais alguém não consegue sair por conveniência, por inércia,
por falta de ambição, por medo ou por tudo isso junto. Isso é estar parado. Acontece que nem todo conforto paralisa.
Compreendo o propósito de quem continua apregoando que é preciso sair da zona de conforto. Mas acho que
passou da hora de virar esse disco. A tão temida zona de conforto não é um lugar de onde se deve sair. É o lugar
para onde todos devemos voltar! [...]
Será que essa obrigação desmedida de escapar de um lugar que nem todo mundo sabe o que é, a qual é
repetida sem filtro nem reflexão nas escolas, nas empresas, nas famílias, não formou uma geração inteira de
pessoas desconfortáveis com o que fazem, com o que têm, com o que são? Será que, em meio a tantas palestras,
livros, filmes e cursos sobre sair da zona de conforto, não sobram três minutinhos para pensarmos com honestidade
sobre o que queremos das nossas próprias vidas antes que alguém repita que é preciso sair da zona de conforto? E
será possível que toda pessoa boa desejando um cadinho de conforto nesse mundo, um pouquinho de aconchego e
descanso, um mínimo percentual de tranquilidade em meio à rotina de trabalho intenso a que todos estamos sujeitos,
seja gratuitamente eleita como simplesmente acomodada? [...]
Honestamente, eu acho que pessoas motivadas a trabalhar duro para merecerem seu espaço no mundo, e
que esse espaço seja bonito, aconchegante e espaçoso para todos os seus sonhos, são verdadeiras fábricas de
felicidade e realização. Não sei você, mas eu quero mesmo é voltar à minha zona de conforto. Eu mereço e trabalho
muito para me sentir confortável com minhas escolhas, com minha família, com meu jeito de estar no mundo, com
todos os desafios que a vida me apresenta todos os dias. E com todo o trabalho intenso que tudo isso representa.
Disponível em: https://vidasimples.co/colunistas/. Acesso em: 11 jun. 2022. Adaptado.