Questões de Português - Encontros consonantais: Dígrafos para Concurso
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Instrução: A questão refere-se ao texto abaixo.
A ÁGUIA E A GALINHA
Era uma vez um camponês que foi à floresta vizinha apanhar um pássaro para mantê-lo cativo em sua casa. Conseguiu pegar um filhote de águia. Colocou-o no galinheiro junto com as galinhas. Comia milho e ração própria para galinhas. Embora a águia fosse a rainha de todos os pássaros.
Depois de cinco anos, este homem recebeu em sua casa a visita de um naturalista. Enquanto passeavam pelo jardim, disse o naturalista:
- Esse pássaro não é uma galinha. É uma águia.
- De fato – disse o camponês. É águia. Mas eu a criei como galinha. Ela não é mais uma águia. Transformou-se em galinha como as outras, apesar das asas de quase três metros de extensão.
- Não – retrucou o naturalista. Ela é e será sempre uma águia. Pois tem um coração de águia. Este coração a fará um dia voar às alturas.
- Não, não – insistiu o camponês. Ela virou galinha e jamais voará como águia.
Então decidiram fazer uma prova. O naturalista tomou a águia, ergueu-a bem alto e desafiando-a disse:
- Já que você de fato é uma águia, já que você pertence ao céu e não à terra, então abra suas asas e voe!
A águia pousou sobre o braço estendido do naturalista. Olhava distraidamente ao redor e as galinhas lá embaixo, ciscando grãos. E pulou pra junto delas.
O camponês comentou:
- Eu lhe disse, ela virou uma simples galinha!
- Não – tornou a insistir o naturalista. Ela é uma águia. E uma águia será sempre uma águia. Vamos experimentar novamente amanhã.
No dia seguinte, o naturalista subiu com a águia no teto da casa. Sussurrou-lhe:
- Águia, já que você é uma águia, abra suas asas e voe!
Mas quando a águia viu lá embaixo as galinhas ciscando o chão, pulou e foi para junto delas.
O camponês sorriu e voltou à carga:
- Eu lhe havia dito, ela virou galinha!
- Não – respondeu firmemente o naturalista. Ela é águia, possuirá sempre um coração de águia. Vamos experimentar ainda uma última vez. Amanhã a farei voar.
- No dia seguinte, o naturalista e o camponês levantaram bem cedo. Pegaram a águia, levaram-na para fora da cidade, longe das casas dos homens, no alto de uma montanha. O sol nascente dourava os picos das montanhas.
O naturalista ergueu a águia para o alto e ordenou-lhe:
- Águia, já que você é uma águia, já que você pertence ao céu e não à terra, abra suas asas e voe!
A águia olhou ao redor. Tremia como se experimentasse uma nova vida. Mas não voou. Então o naturalista segurou-a firmemente, bem na direção do sol, para que seus olhos pudessem encher-se da claridade solar e da vastidão do horizonte.
Nesse momento, ela abriu suas potentes asas, grasnou com o típico kau-kau das águias e ergueu-se soberana, sobre si mesma. E começou a voar, a voar para o alto, a voar cada vez para mais alto. Voou... voou... até confundir-se com o azul do firmamento...
(História narrada pelo educador popular James Aggrey)
Relato
Em Santos, onde morávamos, minha mãe me lia histórias, meu pai gostava de declamar poesias. Foi em algum momento do ginásio – por volta do que hoje seria a sexta ou sétima série – que li de começo a fim um romance: Inocência, de Taunay, é minha mais remota lembrança de leitura de um romance brasileiro. Livro aberto nos joelhos, afundada de atravessado numa poltrona velha e gorda, num quartinho com máquina de costura, estante de quinquilharias e uma gata branca chamada Minie.
Até então, leitura era coisa doméstica. Tinha a ver apenas comigo mesma, com os livros que havia na estante de quinquilharias de meu pai e com os volumes que avós, tias e madrinhas me davam de presente. No cardápio destas leituras, Monteiro Lobato, as aventuras de Tarzan, os volumes da Biblioteca das Moças. O sítio do Pica Pau Amarelo, as florestas africanas, castelos e cidades europeias constituíam a geografia romanesca que preenchia meus momentos livres.
Mas um dia a escola entrou na história. Dona Célia, nossa professora de português, mandou a gente ler um livro chamado Inocência. Disse que era um romance. Na classe, tinha uma menina chamada Maria Inocência. Loira desbotada, rica e chata. Muito chata. Alguma coisa em minha cabeça dizia que um livro com nome de colega chata não podia ser coisa boa.
Foi por isso que com a maior má vontade do mundo comecei a leitura do romance de Visconde de Taunay, de quem eu nunca tinha ouvido falar: visconde, para mim, era o de Sabugosa. Fui lendo a frio, sem entusiasmo nenhum.
O presságio da chatice confirmava-se, até que apareceu o episódio das borboletas. Aí me interessei pelo livro: um alemão corria caçando borboletas e depois dava a uma delas o nome da heroína do livro... Gostei. Não muito, mas gostei. E passei a olhar o nome das borboletas com olhos diferentes: alguma delas seria a papiloinnocentia da história? [...]
(Marisa Lajolo. Como e por que ler o romance brasileiro. Rio de Janeiro: Objetiva, 2004. p. 15-7.)
TEXTO: Ecologia integral
A ecologia integral parte de uma nova visão da Terra. É a visão inaugurada pelos astronautas a partir dos anos 60 quando se lançaram os primeiros foguetes tripulados. Eles veem a Terra de fora da Terra. De lá, de sua nave espacial ou da Lua, como testemunharam vários deles, a Terra aparece como resplandecente planeta azul e branco que cabe na palma da mão e que pode ser escondido pelo polegar humano.
Daquela perspectiva, Terra e seres humanos emergem como uma única entidade. O ser humano é a própria Terra enquanto sente, pensa, ama, chora e venera. A Terra emerge como o terceiro planeta de um Sol que é apenas um entre 100 bilhões de outros de nossa galáxia, que, por sua vez, é uma entre 100 bilhões de outras do universo, universo que, possivelmente, é apenas um entre outros milhões paralelos e diversos do nosso. E tudo caminhou com tal calibragem que permitiu a nossa existência aqui e agora. Caso contrário não estaríamos aqui. Os cosmólogos, vindos da astrofísica, da física quântica, da biologia molecular, numa palavra, das ciências da Terra, nos advertem de que o inteiro universo se encontra em cosmogênese. Isto significa: ele está em gênese, se constituindo e nascendo, formando um sistema aberto, sempre capaz de novas aquisições e novas expressões. Portanto ninguém está pronto. Por isso, temos que ter paciência com o processo global, uns com os outros e também conosco mesmo, pois nós, humanos, estamos igualmente em processo de antropogênese, de constituição e de nascimento.
Três grandes emergências ocorrem na cosmogênese e antropogênese: (1) a complexidade/diferenciação, (2) a auto-organização/consciência e (3) a religação/ relação de tudo com tudo. A partir de seu primeiro momento, após o Big-Bang, a evolução está criando mais e mais seres diferentes e complexos (1). Quanto mais complexos mais se auto-organizam, mais mostram interioridade e possuem mais e mais níveis de consciência (2) até chegarem à consciência reflexa no ser humano. O universo, pois, como um todo possui uma profundidade espiritual. Para estar no ser humano, o espírito estava antes no universo. Agora ele emerge em nós na forma da consciência reflexa e da amorização. E, quanto mais complexo e consciente, mais se relaciona e se religa (3) com todas as coisas, fazendo com que o universo seja realmente uni-verso, uma totalidade orgânica, dinâmica, diversa, tensa e harmônica, um cosmos e não um caos.
As quatro interações existentes, a gravitacional, a eletromagnética e a nuclear fraca e forte constituem os princípios diretores do universo, de todos os seres, também dos seres humanos. A galáxia mais distante se encontra sob a ação destas quatro energias primordiais, bem como a formiga que caminha sobre minha mesa e os neurônios do cérebro humano com os quais faço estas reflexões. Tudo se mantém religado num equilíbrio dinâmico, aberto, passando pelo caos que é sempre generativo, pois propicia um novo equilíbrio mais alto e complexo, desembocando numa ordem rica de novas potencialidades.
Leonardo Boff - adaptado http://leonardoboff.com/site/lboff.htm - acesso em 09/04/2013
Segundo previsões, efeitos do fenômeno climático - o mais intenso em quase 20 anos - deverão aumentar a fome no mundo e já são sentidos no Brasil
O mais forte ciclo do fenômeno climático El Niño registrado até o momento deverá aumentar os riscos de fome e doenças para milhões de pessoas em 2016, alertam organizações humanitárias. Segundo previsões, o El Niño deverá exacerbar secas em algumas áreas e acentuar inundações em outras.
Algumas das áreas mais afetadas estão no continente africano, onde a escassez de comida poderá atingir seu pico em fevereiro. Partes do Caribe e das Américas Central e do Sul também deverão ser atingidas nos próximos seis meses. Especialistas descrevem o El Niño como um fenômeno climático que envolve o aquecimento incomum das águas superficiais e sub-superficiais do Oceano Pacífico Equatorial. Suas causas ainda não são bem conhecidas.
Após analisar imagens de satélite, a Nasa (agência espacial americana) afirma que o El Niño de 2015-2016 poderá ser comparado ao que muitos chamaram de "fenômeno monstruoso" de 18 anos atrás.
"Sem dúvida são muito parecidos. Os fenômenos (El Niño) de 1982-1983 e 1997-1998 foram os de maior impacto no século passado, e parece que agora vemos uma repetição", disse William Patzert, especialista em clima do Laboratório de Propulsão a Jato da Nasa (JPL, na sigla em inglês) e um dos mais importantes estudiosos do El Niño dos EUA. O pesquisador afirmou ainda que é "quase fato que os impactos serão enormes".
Esse evento periódico, que tende a elevar temperaturas globais e alterar padrões climáticos, ajudou 2015 a bater o recorde de ano mais quente da história.
"De acordo com certas medições, esse já foi o El Niño mais forte registrado. Depende da maneira como você mede", disse o cientista Nick Klingaman, da Universidade de Reading, na Inglaterra.
"Em vários países tropicais temos observado reduções entre 20 e 30% nas chuvas. Houve seca severa na Indonésia. Na Índia, as monções (chuvas) foram 15% abaixo do normal e as previsões para o Brasil e Austrália são de redução nas chuvas".
As secas e inundações, e o impacto potencial que representam, preocupam as agências de ajuda humanitária. Cerca de 31 milhões de pessoas estão sob risco de escassez de alimentos na África – um aumento significativo em relação a 2014.
Cerca de um terço dessas pessoas vive na Etiópia, país em que 10,2 milhões de pessoas deverão demandar assistência em 2016, segundo previsões.
(Disponível em:
http://ultimosegundo.ig.com.br/mundo/2016-01-02/clima-foi-de-extremos-em-2015-e-cientistas-fazem-alerta-para-este-ano.html)
JOÃO, FRANCISCO, ANTÔNIO
João, Francisco, Antônio põem-se a contar-me a sua vida. Moram tão longe, no subúrbio, precisam sair tão cedo de casa para chegarem pontualmente a seu serviço. Já viveram aglomerados num quarto, com mulher, filhos, a boa sogra que os ajuda, o cão amigo à porta... A noite deixa cair sobre eles o sono tranquilo dos justos. O sono tranquilo que nunca se sabe se algum louco vem destruir, porque o noticiário dos jornais está repleto de acontecimentos ________________ e amargos.
João, Francisco, Antônio vieram a este mundo, meu Deus, entre mil dificuldades. Mas cresceram, com os pés ____________ pelas pernas, como os imagino, e os prováveis suspensórios – talvez de barbante – escorregando-lhes pelos ombros. É triste, eu sei, a pobreza, mas tenho visto riquezas muito mais tristes para os meus olhos, com vidas frias, sem nenhuma participação do que existe, no mundo, de humano e de circunstante. (...)
João, Francisco, Antônio amam, casam, acham que a vida é assim mesmo, que se vai melhorando aos poucos. Desejam ser pontuais, corretos, exatos no seu serviço. É dura a vida, mas aceitam-na. Desde pequenos, sozinhos sentiram sua condição humana, e, acima dela, uma outra condição a que cada qual se dedica, por ver depois da vida a morte e sentir a responsabilidade de viver.
João, Francisco, Antônio conversam comigo, vestidos de macacão azul, com perneiras, lavando _____________, passando feltros no __________, consertando _________ de portas. Não lhes sinto amargura. Relatam-se, descrevem as modestas construções que eles mesmos levantaram com suas mãos, graças a pequenas economias, a algum favor, a algum benefício. E não sabem com que amor os estou escutando, como penso que este Brasil imenso não é feito só do que acontece em grandes proporções, mas destas pequenas, ininterruptas, perseverantes atividades que se desenvolvem na obscuridade e de que as outras, sem as enunciar, dependem.
Cecília Meireles
CÍRCULO VICIOSO
Bailando no ar, gemia inquieto vaga-lume:
“Quem dera que fosse aquela loura estrela,
Que arde no eterno azul, como uma eterna vela!”
Mas a estrela, fitando a lua, com ciúme:
– “Pudesse eu copiar o transparente lume,
Que da grega coluna à gótica janela,
Contemplou, suspirosa, a fronte amada e bela!”
Mas a lua, fitando o sol, com azedume:
– “Mísera! Tivesse eu aquela enorme, aquela
Claridade imortal, que toda luz resume!”
Mas o sol, inclinando a rútila capela:
– ”Pesa-me esta brilhante auréola de nume ...
Enfara-me esta azul e desmedida umbela...
Por que não nasci eu um simples vaga-lume?”
Machado de Assis
É ético fazer a cabeça de nossos alunos?
Alguns dos livros de história mais usados nas escolas brasileiras carregam na ideologia, que divide o mundo entre os capitalistas malvados e os heróis da resistência
As aulas voltaram, por estas semanas, e decidi tirar a limpo uma velha questão: há ou não doutrinação ideológica em nossos livros didáticos? Para responder à pergunta, analisei alguns dos livros de história e sociologia mais adotados no país. Entre os dez livros que analisei, não encontrei, infelizmente, nenhum “pluralista” ou particularmente cuidadoso ao tratar de temas de natureza política ou econômica.
O viés político surge no recorte dos fatos, na seleção das imagens, nas indicações de leituras, de filmes e de links culturais. A coisa toda opera à moda Star wars : o lado negro da força é a “globalização neoliberal”. O lado bom é a “resistência” do Fórum Social Mundial, de Porto Alegre, e dos “movimentos sociais”. No Brasil contemporâneo, Fernando Henrique Cardoso é Darth Vader, Lula é Luke Skywalker.
No livro Estudos de história , da Editora FTD, por exemplo, nossos alunos aprenderão que Fernando Henrique era neoliberal (apesar de “tentar negar”) e seguiu a cartilha de Collor de Melo; e que os “resultados dessas políticas foram desastrosos”. Em sua época, havia “denúncias de subornos, favorecimentos e corrupção” por todos os lados, mas “pouco se investigou”.
Nossos adolescentes saberão que “as privatizações produziram desemprego” e que o país assistia ao aumento da violência urbana e da concentração de renda e à “diminuição dos investimentos”. E que, de quebra, o MST pressionava pela reforma agrária, “sem sucesso”.
Na página seguinte, a luz. Ilustrado com o decalque vermelho da campanha “Lula Rede Brasil Popular”, o texto ensina que, em 2002, “pela primeira vez” no país, alguém que “não era da elite” é eleito presidente. E que, “graças à política social do governo Lula”, 20 milhões de pessoas saíram da miséria. Isso tudo fez a economia crescer e “telefones celulares, eletrodomésticos sofisticados e computadores passaram a fazer parte do cotidiano de milhões de pessoas, que antes estavam à margem desse perfil de consumo”.
Na leitura seguinte, do livro História geral e do Brasil, da Editora Scipione, o quadro era o mesmo. O PSDB é um partido “supostamente ético e ideológico” e os anos de Fernando Henrique são o cão da peste. Foram tempos de desemprego crescente, de “compromissos com as finanças internacionais”, em que “o crime organizado expandiu-se em torno do tráfico de drogas, convertendo-se em poder paralelo nas favelas”.
Com o governo Lula, tudo muda, ainda que com alguns senões. Numa curiosa aula de economia, os autores tentam explicar por que a “expansão econômica” foi “limitada”: pela adoção de uma “política amigável aos interesses estrangeiros, simbolizada pela liberdade ao capital especulativo”; pela “manutenção, até 2005, dos acordos com o FMI” e dos “pagamentos da dívida externa”.
O livro História conecte , da Editora Saraiva, segue o mesmo roteiro. O governo Fernando Henrique é “neoliberal”. Privatizou “a maioria das empresas estatais” e os US$ 30 bilhões arrecadados “não foram investidos em saúde e educação, mas em lucros aos investidores e especuladores, com altas taxas de juros”. A frase mais curiosa vem no final: em seu segundo mandato, Fernando Henrique não fez “nenhuma reforma” nem tomou “nenhuma medida importante”. Imaginei o presidente deitado em uma rede, enquanto o país aprovava a Lei de Responsabilidade Fiscal (2000), o fator previdenciário (1999) ou o Bolsa Escola (2001).
No livro História para o ensino médio , da Atual Editora, é curioso o tratamento dado ao “mensalão”. Nossos alunos saberão apenas que houve “denúncias de corrupção” contra o governo Lula, incluindo-se um caso conhecido como mensalão, “amplamente explorado pela imprensa liberal de oposição ao petismo”.
Sobre a América Latina, nossos alunos aprenderão que o Paraguai foi excluído do Mercosul em 2012, por causa do “golpe de Estado”, que tirou do poder Fernando Hugo. Saberão que, com a eleição de Hugo Chávez, a Venezuela torna-se o “centro de contestação à política de globalização da economia liderada pelos Estados Unidos”. Que “a classe média e as elites conservadoras” não aceitaram as transformações produzidas pelo chavismo, mas que o comandante “conseguiu se consolidar”. Sobre a situação econômica da Venezuela, alguma informação? Algum dado crítico para dar uma equilibrada e permitir aos alunos que formem uma opinião? Nada.
Curioso é o tratamento dado às ditaduras da América Latina. Para os casos da Argentina, Uruguai e Chile, um capítulo (merecido) mostrando os horrores do autoritarismo e seus heróis: extratos de As veias abertas d a América Latina , de Eduardo Galeano; as mães da Praça de Maio, na Argentina; o músico Víctor Jara, executado pelo regime de Pinochet. Tudo perfeito.
Quando, porém, se trata de Cuba, a conversa é inteiramente diferente. A única ditadura que aparece é a de Fulgêncio Batista. Em vez de filmes como
Antes do anoitecer , sobre a repressão ao escritor homossexual Reynaldo Arenas, nossos estudantes são orientados a assistir a Diários de Motocicleta , Che e Personal Che.
As restrições do castrismo à “liberdade de pensamento” surgem como “contradições” da revolução. Alguma palavra sobre os balseiros cubanos? Alguma fotografia, sugestão de filme ou link cultural? Alguma coisa sobre o paredón cubano? Alguma coisa sobre Yoane Sánchez ou as Damas de Branco? Zero. Nossos estudantes não terão essas informações para produzir seu próprio juízo. É precisamente isso que se chama ideologização.
A doutrinação torna-se ainda mais aguda quando passamos para os manuais de sociologia. Em plena era das sociedades de rede, da revolução maker, da explosão dos coworkings e da economia colaborativa, nossos jovens aprendem uma rudimentar visão binária de mundo, feita de capitalistas malvados versus heróis da “resistência”. Em vez de encarar o século XXI e suas incríveis perspectivas, são conduzidos de volta à Manchester do século XIX.
Superar esse problema não é uma tarefa trivial. Há um “mercado” de produtores de livros didáticos bem estabelecido no país, agindo sob a inércia de nossas editoras e a passividade de pais, professores e autoridades de educação. Sob o argumento malandro de que “tudo é ideologia”, essas pessoas prejudicam o desenvolvimento do espírito crítico de nossos alunos. E com isso fazem muito mal à educação brasileira.
Artigo escrito pelo filósofo Fernando L. Schüler. Revista Época . Edição de 07 de março de 2016. Número 925
A passagem a seguir servirá de base para a questão.
“E que, de quebra, o MST pressionava pela reforma agrária, “sem sucesso”.”
De acordo com as normas vigentes no sistema ortográfico da língua portuguesa, as palavras sublinhadas “quebra” e “sucesso”, respectivamente, apresentam:
É ético fazer a cabeça de nossos alunos?
Alguns dos livros de história mais usados nas escolas brasileiras carregam na ideologia, que divide o mundo entre os capitalistas malvados e os heróis da resistência
As aulas voltaram, por estas semanas, e decidi tirar a limpo uma velha questão: há ou não doutrinação ideológica em nossos livros didáticos? Para responder à pergunta, analisei alguns dos livros de história e sociologia mais adotados no país. Entre os dez livros que analisei, não encontrei, infelizmente, nenhum “pluralista” ou particularmente cuidadoso ao tratar de temas de natureza política ou econômica.
O viés político surge no recorte dos fatos, na seleção das imagens, nas indicações de leituras, de filmes e de links culturais. A coisa toda opera à moda Star wars : o lado negro da força é a “globalização neoliberal”. O lado bom é a “resistência” do Fórum Social Mundial, de Porto Alegre, e dos “movimentos sociais”. No Brasil contemporâneo, Fernando Henrique Cardoso é Darth Vader, Lula é Luke Skywalker.
No livro Estudos de história , da Editora FTD, por exemplo, nossos alunos aprenderão que Fernando Henrique era neoliberal (apesar de “tentar negar”) e seguiu a cartilha de Collor de Melo; e que os “resultados dessas políticas foram desastrosos”. Em sua época, havia “denúncias de subornos, favorecimentos e corrupção” por todos os lados, mas “pouco se investigou”.
Nossos adolescentes saberão que “as privatizações produziram desemprego” e que o país assistia ao aumento da violência urbana e da concentração de renda e à “diminuição dos investimentos”. E que, de quebra, o MST pressionava pela reforma agrária, “sem sucesso”.
Na página seguinte, a luz. Ilustrado com o decalque vermelho da campanha “Lula Rede Brasil Popular”, o texto ensina que, em 2002, “pela primeira vez” no país, alguém que “não era da elite” é eleito presidente. E que, “graças à política social do governo Lula”, 20 milhões de pessoas saíram da miséria. Isso tudo fez a economia crescer e “telefones celulares, eletrodomésticos sofisticados e computadores passaram a fazer parte do cotidiano de milhões de pessoas, que antes estavam à margem desse perfil de consumo”.
Na leitura seguinte, do livro História geral e do Brasil, da Editora Scipione, o quadro era o mesmo. O PSDB é um partido “supostamente ético e ideológico” e os anos de Fernando Henrique são o cão da peste. Foram tempos de desemprego crescente, de “compromissos com as finanças internacionais”, em que “o crime organizado expandiu-se em torno do tráfico de drogas, convertendo-se em poder paralelo nas favelas”.
Com o governo Lula, tudo muda, ainda que com alguns senões. Numa curiosa aula de economia, os autores tentam explicar por que a “expansão econômica” foi “limitada”: pela adoção de uma “política amigável aos interesses estrangeiros, simbolizada pela liberdade ao capital especulativo”; pela “manutenção, até 2005, dos acordos com o FMI” e dos “pagamentos da dívida externa”.
O livro História conecte , da Editora Saraiva, segue o mesmo roteiro. O governo Fernando Henrique é “neoliberal”. Privatizou “a maioria das empresas estatais” e os US$ 30 bilhões arrecadados “não foram investidos em saúde e educação, mas em lucros aos investidores e especuladores, com altas taxas de juros”. A frase mais curiosa vem no final: em seu segundo mandato, Fernando Henrique não fez “nenhuma reforma” nem tomou “nenhuma medida importante”. Imaginei o presidente deitado em uma rede, enquanto o país aprovava a Lei de Responsabilidade Fiscal (2000), o fator previdenciário (1999) ou o Bolsa Escola (2001).
No livro História para o ensino médio , da Atual Editora, é curioso o tratamento dado ao “mensalão”. Nossos alunos saberão apenas que houve “denúncias de corrupção” contra o governo Lula, incluindo-se um caso conhecido como mensalão, “amplamente explorado pela imprensa liberal de oposição ao petismo”.
Sobre a América Latina, nossos alunos aprenderão que o Paraguai foi excluído do Mercosul em 2012, por causa do “golpe de Estado”, que tirou do poder Fernando Hugo. Saberão que, com a eleição de Hugo Chávez, a Venezuela torna-se o “centro de contestação à política de globalização da economia liderada pelos Estados Unidos”. Que “a classe média e as elites conservadoras” não aceitaram as transformações produzidas pelo chavismo, mas que o comandante “conseguiu se consolidar”. Sobre a situação econômica da Venezuela, alguma informação? Algum dado crítico para dar uma equilibrada e permitir aos alunos que formem uma opinião? Nada.
Curioso é o tratamento dado às ditaduras da América Latina. Para os casos da Argentina, Uruguai e Chile, um capítulo (merecido) mostrando os horrores do autoritarismo e seus heróis: extratos de As veias abertas d a América Latina , de Eduardo Galeano; as mães da Praça de Maio, na Argentina; o músico Víctor Jara, executado pelo regime de Pinochet. Tudo perfeito.
Quando, porém, se trata de Cuba, a conversa é inteiramente diferente. A única ditadura que aparece é a de Fulgêncio Batista. Em vez de filmes como
Antes do anoitecer , sobre a repressão ao escritor homossexual Reynaldo Arenas, nossos estudantes são orientados a assistir a Diários de Motocicleta , Che e Personal Che.
As restrições do castrismo à “liberdade de pensamento” surgem como “contradições” da revolução. Alguma palavra sobre os balseiros cubanos? Alguma fotografia, sugestão de filme ou link cultural? Alguma coisa sobre o paredón cubano? Alguma coisa sobre Yoane Sánchez ou as Damas de Branco? Zero. Nossos estudantes não terão essas informações para produzir seu próprio juízo. É precisamente isso que se chama ideologização.
A doutrinação torna-se ainda mais aguda quando passamos para os manuais de sociologia. Em plena era das sociedades de rede, da revolução maker, da explosão dos coworkings e da economia colaborativa, nossos jovens aprendem uma rudimentar visão binária de mundo, feita de capitalistas malvados versus heróis da “resistência”. Em vez de encarar o século XXI e suas incríveis perspectivas, são conduzidos de volta à Manchester do século XIX.
Superar esse problema não é uma tarefa trivial. Há um “mercado” de produtores de livros didáticos bem estabelecido no país, agindo sob a inércia de nossas editoras e a passividade de pais, professores e autoridades de educação. Sob o argumento malandro de que “tudo é ideologia”, essas pessoas prejudicam o desenvolvimento do espírito crítico de nossos alunos. E com isso fazem muito mal à educação brasileira.
Artigo escrito pelo filósofo Fernando L. Schüler. Revista Época . Edição de 07 de março de 2016. Número 925
A passagem adiante servirá de base para a próxima questão:
“Curioso é o tratamento dado às ditaduras da América Latina. Para os casos da Argentina, Uruguai e Chile, um capítulo (merecido) mostrando os horrores do autoritarismo e seus heróis: extratos de As veias abertas da América Latina , de Eduardo Galeano; as mães da Praça de Maio, na Argentina; o músico Víctor Jara, executado pelo regime de Pinochet. Tudo perfeito.”
A segunda palavra sublinhada, horrores, apresenta, de acordo com as normas vigentes no sistema ortográfico da língua portuguesa:
Ano Bom
(Sérgio Porto)
Felizmente somos assim, somos o lado bom da humanidade, a grande maioria, os de boa-fé. Baseado em nossa confiança no destino, em nossas sempre renovadas esperanças, é que o mundo consegue funcionar regularmente, deixando-nos a doce certeza – embora nossos incontornáveis amargores – de que viver é bom e vale a pena. E nós – graças às três virtudes teologais, às quais nos dedicamos suavemente, sem sentir, amando a Deus sobre todas as coisas e ao próximo como a nós mesmos; graças a elas, achamos sinceramente que o ano que entra é o Ano-Bom, tal como aconteceu no dezembro que se foi e tal como acontecerá no dezembro que virá.
Todos com ar de novidade, olhares onde não se esconde a ansiedade pela noite de 31, vamos distribuindo os nossos melhores votos de felicidades:
- Boas entradas no Ano-Bom!
- Igualmente, para você e todos os seus.
E os dois que se reciprocaram tão belas entradas seguem os seus caminhos, cada qual para o seu lado, com um embrulho de presentes debaixo do braço e um mundo de planos na cabeça.
Ninguém duvida de que este, sim, é o Ano-Bom.
Pois se o outro não foi!
E mesmo que tivesse sido, já não interessa mais – passou. E como este é o que vamos viver, este é o bom. Ademais, se é justo que desejemos dias melhores para nós, nada impede àqueles que foram felizes de se desejarem dias mais venturosos ainda. Por isso, lá vamos todos pródigos em boas intenções, distribuindo presentes para alguns, abraços para muitos e bons presságios para todos.
- Boas entradas de Ano-Bom!
- Igualmente, para você e todos os seus.
A mocinha comprou uma gravata de listras, convencida pelo caixeiro de que o patrão era discreto. O rapaz comprou o perfume que o contrabandista jurou que era verdadeiro. Senhoras, a cada compra feita, tiram uma lista da bolsa e riscam um nome. Homens de negócios se trocarão aquelas cestas imensas, cheias de papel, algumas frutas secas, outras não, e duas garrafas de vinho, se tanto. Ao nosso lado, no lotação, um senhor de cabeça branca trazia um embrulho grande, onde adivinhamos um brinquedo colorido. De vez em quando ele olhava para o embrulho e sorria, antegozando a alegria do neto.
No mais, os planos de cada um. Este vai juntar dinheiro, aquele acaricia a possibilidade de ter o seu longamente desejado automóvel. Há ainda uma jovem que ainda não sabe com quem, mas quer casar. Há um homem e o seu desejo, uma mulher e a sua esperança. Uma bicicleta para o menininho, boneca que diz “mamãe” para a garotinha; letra “O” para o funcionário; viagens para Maria; uma paróquia para o senhor vigário; um homem para Isabel – a sem pecados; Oswaldo não pensa noutra coisa; o diplomata quer Paris; o sambista um sucesso; a corista uma oportunidade; muitos candidatos vão querer a presidência; muitas mães querem filhos; muitos filhos querem um lar; há os que querem sossego; d. Odete, ao contrário, está louca pra badalar; fulano finge não ter planos; por falta de imaginação, sujeitos que já têm, querem o que têm em dobro, e, na sua solidão, há um viúvo que só pensa na vizinha.
Todos se conhecem com maior ou menor grau de intimidade e, quando se encontram, saúdam-se:
- Boas entradas de Ano-Bom!
- Igualmente, para você e todos os seus.
Felizmente somos assim. Felizmente não paramos para meditar, ter a certeza de que este não é o Ano-Bom porque é um ano como outro qualquer e que, através de seus trezentos e sessenta e cinco dias, teremos que enfrentar os mesmos problemas, as mesmas tristezas e alegrias. Principalmente erraremos da mesma maneira e nos prometeremos não errar mais, esquecidos de nossos defeitos e virtudes, os defeitos e virtudes que carregaremos até o último ano, o último dia, a última hora, a hora de nossa morte... amém!
Mas não vamos nos negar esperanças, porque assim é que é humano; nem nos neguemos o arrependimento de nossos erros, embora, no ano novo, voltemos a errar da mesma forma, o que é mais humano ainda.
Recomeçar, pois – ou, pelo menos, o desejo sincero de recomeçar -, a cada nova etapa, com alento para não pensar que, tão pronto estejam cometidos todos os erros de sempre, um outro ano virá, um outro Ano-Bom, no qual entraremos arrependidos, a fazer planos para o futuro, quando tudo acontecerá outra vez.
Até lá, no entanto, teremos fé, esperança e caridade bastante para nos repetirmos mutuamente:
- Boas entradas de Ano-Bom!
- Igualmente, para você e todos os seus.
Porto, Sérgio. O homem ao lado: crônicas / Sérgio Porto – 1ª ed. – São Paulo: Companhia das Letras, 2014.
Ano Bom
(Sérgio Porto)
Felizmente somos assim, somos o lado bom da humanidade, a grande maioria, os de boa-fé. Baseado em nossa confiança no destino, em nossas sempre renovadas esperanças, é que o mundo consegue funcionar regularmente, deixando-nos a doce certeza – embora nossos incontornáveis amargores – de que viver é bom e vale a pena. E nós – graças às três virtudes teologais, às quais nos dedicamos suavemente, sem sentir, amando a Deus sobre todas as coisas e ao próximo como a nós mesmos; graças a elas, achamos sinceramente que o ano que entra é o Ano-Bom, tal como aconteceu no dezembro que se foi e tal como acontecerá no dezembro que virá.
Todos com ar de novidade, olhares onde não se esconde a ansiedade pela noite de 31, vamos distribuindo os nossos melhores votos de felicidades:
- Boas entradas no Ano-Bom!
- Igualmente, para você e todos os seus.
E os dois que se reciprocaram tão belas entradas seguem os seus caminhos, cada qual para o seu lado, com um embrulho de presentes debaixo do braço e um mundo de planos na cabeça.
Ninguém duvida de que este, sim, é o Ano-Bom.
Pois se o outro não foi!
E mesmo que tivesse sido, já não interessa mais – passou. E como este é o que vamos viver, este é o bom. Ademais, se é justo que desejemos dias melhores para nós, nada impede àqueles que foram felizes de se desejarem dias mais venturosos ainda. Por isso, lá vamos todos pródigos em boas intenções, distribuindo presentes para alguns, abraços para muitos e bons presságios para todos.
- Boas entradas de Ano-Bom!
- Igualmente, para você e todos os seus.
A mocinha comprou uma gravata de listras, convencida pelo caixeiro de que o patrão era discreto. O rapaz comprou o perfume que o contrabandista jurou que era verdadeiro. Senhoras, a cada compra feita, tiram uma lista da bolsa e riscam um nome. Homens de negócios se trocarão aquelas cestas imensas, cheias de papel, algumas frutas secas, outras não, e duas garrafas de vinho, se tanto. Ao nosso lado, no lotação, um senhor de cabeça branca trazia um embrulho grande, onde adivinhamos um brinquedo colorido. De vez em quando ele olhava para o embrulho e sorria, antegozando a alegria do neto.
No mais, os planos de cada um. Este vai juntar dinheiro, aquele acaricia a possibilidade de ter o seu longamente desejado automóvel. Há ainda uma jovem que ainda não sabe com quem, mas quer casar. Há um homem e o seu desejo, uma mulher e a sua esperança. Uma bicicleta para o menininho, boneca que diz “mamãe” para a garotinha; letra “O” para o funcionário; viagens para Maria; uma paróquia para o senhor vigário; um homem para Isabel – a sem pecados; Oswaldo não pensa noutra coisa; o diplomata quer Paris; o sambista um sucesso; a corista uma oportunidade; muitos candidatos vão querer a presidência; muitas mães querem filhos; muitos filhos querem um lar; há os que querem sossego; d. Odete, ao contrário, está louca pra badalar; fulano finge não ter planos; por falta de imaginação, sujeitos que já têm, querem o que têm em dobro, e, na sua solidão, há um viúvo que só pensa na vizinha.
Todos se conhecem com maior ou menor grau de intimidade e, quando se encontram, saúdam-se:
- Boas entradas de Ano-Bom!
- Igualmente, para você e todos os seus.
Felizmente somos assim. Felizmente não paramos para meditar, ter a certeza de que este não é o Ano-Bom porque é um ano como outro qualquer e que, através de seus trezentos e sessenta e cinco dias, teremos que enfrentar os mesmos problemas, as mesmas tristezas e alegrias. Principalmente erraremos da mesma maneira e nos prometeremos não errar mais, esquecidos de nossos defeitos e virtudes, os defeitos e virtudes que carregaremos até o último ano, o último dia, a última hora, a hora de nossa morte... amém!
Mas não vamos nos negar esperanças, porque assim é que é humano; nem nos neguemos o arrependimento de nossos erros, embora, no ano novo, voltemos a errar da mesma forma, o que é mais humano ainda.
Recomeçar, pois – ou, pelo menos, o desejo sincero de recomeçar -, a cada nova etapa, com alento para não pensar que, tão pronto estejam cometidos todos os erros de sempre, um outro ano virá, um outro Ano-Bom, no qual entraremos arrependidos, a fazer planos para o futuro, quando tudo acontecerá outra vez.
Até lá, no entanto, teremos fé, esperança e caridade bastante para nos repetirmos mutuamente:
- Boas entradas de Ano-Bom!
- Igualmente, para você e todos os seus.
Porto, Sérgio. O homem ao lado: crônicas / Sérgio Porto – 1ª ed. – São Paulo: Companhia das Letras, 2014.
Seca
(Rachel de Queiroz)
Era a hora do almoço dos trabalhadores. Enquanto os homens comiam lá dentro, o fazendeiro velho sentava-se na rede do alpendre, à frente de casa espiando o sol no céu, que tinia como vidro, procurando desviar os olhos da água do açude, lá além, que dentro de mais um mês estaria virada em lama.
Os dois cabras se aproximaram sem que ele pressentisse. Eram um alto e um baixo; o baixo grosso e escuro, vestido numa camisa de algodãozinho encardido. O alto era alourado, e não se podia dizer que estivesse vestido de coisa nenhuma, porque era farrapo só. O grosso na mão trazia um couro de cabra, ainda pingando sangue, esfolado que fora fazia pouco. E nem tirou o caco de chapéu da cabeça, nem salvou ao menos.
O velho até se assustou e bruscamente se pôs a cavalo na rede, a escutar a voz grossa e áspera, tal e qual quem falava:
- Cidadão, vim lhe vender este couro de bode.
Aquele “cidadão”, assim desabrido, já dizia tudo. Ninguém chega de boa tenção em terreiro alheio sem dar bom-dia, e tratando o dono da casa de cidadão. Assim, o fazendeiro achou melhor fingir que não ouvira – e foi se pondo em pé.
- O Quê? Que é que você quer?
O homem escuro botou o couro em cima do parapeito e o sangue escorreu num fio pela cal da parede.
- Estou arranchado com minha família debaixo daquele juazeiro grande, ali. Essa cabra passou perto – não sei de quem era. Matei, e a mulher está cozinhando a carne para se comer. Agora, o couro – o senhor ou me dá dinheiro por ele, ou me dá farinha.
- E de quem é essa cabra? É minha? Quem lhe deu ordem para matar?
O velho estava tão furioso que o dedo dele, espetado no ar, tremia. E o loureba esfarrapado chegou perto dele e deu a sua risadinha:
- Ninguém perguntou a ela o nome do dono...
Mas o outro, sempre sério, olhou o velho na cara:
- Matei com ordem da fome. O senhor quer ordem melhor?
Nesse meio tempo, os homens que almoçavam lá dentro escutaram as vozes alteradas e vieram ver o que havia. Eram uns doze – foram aparecendo pelo oitão da casa, de um em um e se abriram em redor dos estranhos no terreiro.
Aí o velho, se vendo garantido, começou a gritar:
- Na minha terra só eu dou ordem! Vocês são muito é atrevidos – me matarem o bicho e ainda trazerem o couro pra vender, por desaforo! Chico Luís, veja aí de quem é o sinal dessa criação.
O feitor largou a foice no chão, puxou as orelhas do couro, e virou-se achando graça para um dos companheiros: era a sua cabrinha, não era mesmo, compadre Augusto? Está aqui o sinal...
O Augusto veio olhar também e ficou danado:
- Seus perversos, a cabra era da minha menina beber leite, estava de cabrito novo!
Mas o olho do homem escuro era feio e, se ele se assustara vendo-se cercado pelos cabras da fazenda, não deu parecença. O loureba é que virava a cara dum lado para outro, procurando saída; ainda levou a mão ao quadril, tateou o rabo da faca – mas cada um dos homens tinha uma foice, um terçado, um ferro na mão.
Nesse pé, o fazendeiro, para acabar a história, resolveu mostrar bom coração; e gritou para o corredor:
- Menina! Manda aí uma cuia com um bocado de farinha!
Depois, retornando ao homem:
- Eu podia mandar prender vocês, para aprenderem a não matar bicho alheio! Mas têm crianças, não é? Tenho pena das crianças! Leve essa farinha, comam e tratem de ir embora. Daqui a uma hora quero o pé de juazeiro limpo e vocês na estrada. Podem ir!
O homem recebeu a cuia, não disse nada, saiu sem olhar para trás. O outro o acompanhou, meio temeroso, tirou ainda o chapéu em despedida e pegou no passo do companheiro. O velho reclamava em voz alta – cabra desgraçado, além de fazer o malfeito, recebe o favor e nem sequer abana o rabo.
Os trabalhadores, calados, acompanhavam com os olhos os dois estranhos que marchavam um atrás do outro, na direção do juazeiro, do qual só se avistava a copa alta dali do terreiro. Ninguém sabe o que pensavam; o dono da cabra deu de mão no couro e foi com ele para trás da casa.
Aí a sineta bateu e os homens saíram para o serviço. Passando pelo juazeiro, lá viram a família ao redor do fogo, os meninos procurando pescar pedaços da carne que fervia numa lata. Mas o homem escuro, encostado ao tronco, via-os passar, de braços cruzados, sem baixar os olhos. Ainda foi o dono da cabra que baixou os seus; explicou depois que não gostava de briga.
MORALIDADE: Este caso aconteceu mesmo. Faz mais de trinta anos escrevi uma história de cabra morta por retirante, mas era diferente. Então, o homem sentia dor de consciência, e até se humilhou quando o dono do bicho morto o chamou de ladrão. Agora não é mais assim. Agora eles sabem que a fome dá um direito que passa por cima de qualquer direito dos outros. A moralidade da história é mesmo esta: tudo mudou, mudou muito.
Elenco de cronistas modernos [por] Carlos Drummond de Andrade [e outros] – 21ª ed. – Rio de Janeiro: José Olympio, 2005
“O velho reclamava em voz alta – cabra desgraçado, além de fazer o malfeito, recebe o favor e nem sequer abana o rabo.”
De acordo com as normas vigentes no sistema ortográfico da língua portuguesa, as palavras grifadas, respectivamente, apresentam:
Observe:
“Não serei o poeta de um mundo caduco.
Também não cantarei o mundo futuro.
Estou preso à vida e olho meus companheiros.”
(Carlos Drummond de Andrade)
Assinale a alternativa incorreta:
Dez casos de racismo que envergonham o futebol.
Arouca
Em jogo do Santos contra o Mogi Morim pelo Campeonato Paulista, o volante santista marcou um golaço na vitória por 5 a 2. Mas a alegria foi substituída pela indignação. Torcedores do time rival o chamaram de macaco e um outro lhe disse que deveria procurar uma seleção africana para jogar. Arouca, no dia seguinte, clamou por punição exemplar. "A impunidade e a conivência das autoridades com as pessoas que fazem esse tipo de coisa são tão graves quanto os próprios atos em si. Somente discursos e promessas não resolvem a falta de educação e de humanidade de alguns", escreveu.
Boateng
Foi num amistoso do Milan, onde jogava, com o pequeno Pro Patria, da terceira divisão italiana. A torcida rival começou a entoar cantos racistas contra o meia Kevin Prince-Boateng. Revoltado, o jogador alemão, de origem ganesa, chutou a bola em direção aos torcedores, tirou a camisa e voltou para o vestiário, recusando-se a continuar jogando. Os demais jogadores do Milan foram solidários ao colega e também abandonaram a partida, que foi paralisada. Indignado, Boateng desabafou no Twitter: "É uma vergonha que essas coisas ainda aconteçam. O racismo tem que acabar, para sempre".
Daniel Alves
Numa das edições do clássico entre Real Madrid e Barcelona, no Santiago Bernabeu, o lateral da seleção brasileira ouviu, nos minutos finais do jogo, sons de imitações de macacos vindos das arquibancadas. A situação não foi inédita para o jogador. Ele chegara a afirmar, em outro episódio, que era uma "luta perdida".
Balotelli
Durante a Euro 2012, em jogo da Croácia contra a Itália, em Poznan, o alvo foi o atacante italiano, de origem ganesa. Uma banana foi arremessada para o campo por torcedores croatas. A rede Futebol Contra o Racismo na Europa, que trabalha junto da Uefa e tem dois "monitores internacionais" em cada partida, escreveu em sua página no Twitter que seus membros apontaram "entre 300 e 500 torcedores croatas" envolvidos em ataques raciais a Balotelli.
Márcio Chagas da Silva
O árbitro Márcio Chagas da Silva, que apitou o jogo entre Esportivo e Veranópolis, em Bento Gonçalves, encontrou seu carro danificado e com bananas no capô e no cano de descarga após a partida, válida pelo Campeonato Gaúcho. "Um grupo de torcedores se manifestou de forma racista desde o início, com gritos de 'macaco', 'teu lugar é na selva', 'volta pro circo' e coisas desse tipo", contou. Dez anos antes ele já tinha sido vitima de preconceito no mesmo estádio, na Serra gaúcha.
Tinga
Durante o jogo do Cruzeiro no Peru, contra o Real Garcilaso, o volante brasileiro foi hostilizado por uma parte do estádio, que reproduzia chiados de macacos sempre que ele pegava na bola. O caso repercutiu. A presidente Dilma Rousseff comentou no Twitter e deu todo apoio ao jogador. "Ao sair do jogo, Tinga disse que trocaria seus títulos por um mundo com igualdade entre as raças. Por isso, hoje, o Brasil inteiro está fechado com o Tinga. Acertei com a ONU e com a Fifa que a nossa Copa das Copas também será a Copa contra o racismo. Porque o esporte não deve ser jamais palco para o preconceito", escreveu a presidente, fazendo da expressão “fechado com Tinga” uma das mais retuitadas.
POR QUE A FEBRE AMARELA VIROU UMA AMEAÇA
PARA A REGIÃO MAIS POPULOSA DO PAÍS?
Marcela Buscato
Há 17 anos, Giorgi, ex-empresário, trocou a vida na capital pela tranquilidade do condomínio, a apenas 30 minutos da metrópole. Entre todos os terrenos, criados a partir do loteamento de uma fazenda de seu pai, a família escolheu para construir a casa na área em frente à vegetação típica da região, que mescla remanescentes de Mata Atlântica a manchas de Cerrado. A casa envidraçada, projetada pela mulher de Giorgi, a arquiteta Beatriz, de 64 anos, debruça-se sobre a vegetação. A área da piscina se abre até os limites da mata. Sentados no terraço, Giorgi, de 71 anos, Beatriz e o casal de filhos, Vitoria, de 23 anos, e Lucas, de 21, acostumaram-se a chamar pelos saguis. Habituaram-se a observar o deslocamento lento até de uma família inteira de bugios, um macaco maior e mais arredio.
O acordar todas as manhãs era acompanhado pelo ronco gutural da espécie ao longe. Desde outubro, o barulho dos bugios rareou a cada amanhecer, até cessar. Também desapareceram os sauás, outra espécie de macaco de médio porte. “É o segundo dia que não vejo sauás. Estou preocupado”, diz Giorgi. Os agentes do Centro de Vigilância e Controle de Zoonoses que visitam a casa inclinam a cabeça para observar o topo das árvores, em busca dos macacos. As folhas se mexem. Pássaros apenas. A presença dos agentes na casa da família Giorgi dá pistas sobre o sumiço dos animais. Desde agosto, depois de um macaco morto ser encontrado na divisa da cidade com Louveira, funcionários da prefeitura visitam propriedades da zona rural para orientar os moradores. Explicam sobre uma doença que afetou os macacos de maneira sem precedentes na região e se tornou uma ameaça real também para os humanos: a febre amarela.
Transmitida atualmente pela picada de mosquitos silvestres, que vivem na copa das árvores na floresta e à beira das matas, a doença é causada por um vírus do mesmo tipo dos que causam dengue, zika e chikungunya. Porém, mais letal. A doença mata um terço das pessoas com sintomas: febre súbita, vômitos, dores de cabeça e no corpo. Nesses quadros, há comprometimento irreversível do fígado e dos rins. Em 2017, o Brasil enfrenta o pior surto de febre amarela desde que o governo começou a registrar os casos, nos anos 1980. As primeiras infecções começaram no ano passado. Nos 12 meses de julho de 2016 a junho de 2017, morreram 262 pessoas. Foram 779 casos, quase o mesmo número total ocorrido nos 36 anos anteriores, 797.
Os casos que se costumavam contar às dezenas, principalmente na região amazônica, deram lugar às centenas na região mais populosa do país, o Sudeste. Concentraram-se nos estados de Minas Gerais (475), Espírito Santo (306) e Rio de Janeiro (29 casos) – esses dois últimos considerados até então regiões de menor risco. No estado de São Paulo, dos 23 casos em humanos confirmados como infecção local, 14 ocorreram na área sem recomendação de vacina, mais ao leste. “Houve uma mudança no perfil da doença: ela está se aproximando das grandes cidades”, diz o médico virologista Maurício Nogueira, presidente da Sociedade Brasileira de Virologia. Isso explica por que famílias como a Giorgi, em Jundiaí, instaladas em confortáveis condomínios à beira da maior metrópole da América do Sul, viram-se cara a cara com uma doença que ocupa, no imaginário brasileiro, a categoria de moléstia tropical sepultada pelo tempo – ou, pelo menos, empurrada pela urbanização para as florestas ao Norte.
Adaptação de http://epoca.globo.com/saude/checkup/noticia/2017/11/por-que-febre-amarela-virou-uma-ameaca-pararegiao-mais-populosa-do-pais.html/ , acesso em 24 de nov. de 2017.
Analise as seguintes palavras retiradas do texto e as afirmações que vem a seguir:
• Acompanhados.
• Cardiovascular.
• Participantes.
I. Todas as palavras apresentam dígrafo.
II. Há apenas uma palavra com mais de um dígrafo.
III. Há apenas uma palavra que apresenta dois encontros consonantais.
Quais estão corretas?