A cidade acordou mais cedo.
Primeiro foram os fogos. E ainda não eram seis da manhã. Depois os tiros. Em seguida, os
voos de helicóptero. Assim amanheceu a Rocinha neste sábado. Por esse motivo, na favela
e nos bairros que a contornam, como um abraço dos aflitos, não se pode dizer que seja
sábado, dia de descanso.
Os helicópteros vêm e vão nesse sobrevoo que parece meio sem sentido. A cidade não pode
descansar há muito. É sempre guerra em algum ponto. Leio nos jornais de hoje que a Urca
também tem guerra de facções. Urca costumava ser deixada de lado nessa insana conquista
de territórios, porque sempre foi bairro dos militares e alguns poucos privilegiados civis que
conseguiram uma casa no belo e aconchegante bairro. Fui lá outro dia, comi uma caldeirada
de frutos do mar, iguaria sem competidor, e olhei o Rio depois da água. É bela a vista de lá,
como de resto, a cidade por natureza e destino continua linda. E cada vez mais à deriva, no
seu próprio mar de baía.
Hoje, com a confusão na Rocinha, a Zona Sul acordou mais cedo. Ou não, diria Caetano, um
dos seus ilustres moradores. A Zona Sul pode ter se acostumado depois de tantos anos de
conflito na área conturbada, ou pode ter escolhido abafar o ruído da realidade atrás dos fones
de ouvido.
O Rio é como um belo navio onde navegamos todos juntos, não importa qual seja a classe
social. Ou nos salvamos juntos ou afundaremos. Há quem creia que a embarcação já aderna
cansada de guerra. Nas mazelas do Brasil, coube a esta cidade intensa e bela viver em seu
corpo a geografia das desigualdades. Somos todos vizinhos. Chapéu Mangueira entra em
ebulição e o Leme fica trancado em casa, sem ter como sair e viver a vida naquela ponta
bonita do mar de Copacabana. A Rocinha em disputa afeta um arco de bairros. Do lado de cá
a Gávea, do lado de lá São Conrado. Outro dia, o Fallet-Fogueteiro acordou encrencado e
fecharam-se as portas do bonito casario colonial de Santa Teresa que, ademais, há muito vive
cercado.
Por sermos todos vizinhos, pelo menos o Rio não pode repetir o alienado e perverso enredo
do Titanic de trancar os pobres e tentar salvar a primeira classe. A cidade é partida sim, mas
é como uma grande casa de quartos contíguos. A fortuna separa, contudo a tragédia é
compartilhada. Os fogos, tiros e voos desta manhã provam que não haverá futuro para o Rio
que não seja comum. Pensamentos terminais e aflitos para um sábado que seria de descanso,
se possível fosse.
https://g1.globo.com - Miriam Leitão - junho/18