Questões de Português - Orações subordinadas adverbiais: Causal, Comparativa, Consecutiva, Concessiva, Condicional... para Concurso
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Texto para a questão.
Atenção: Considere a entrevista abaixo para responder à questão.
1. La Lettre − O centésimo aniversário de Claude Lévi-Strauss e a grande atenção que suscita revelam a posição excepcional que ocupa o autor de Tristes trópicos, uma das grandes figuras do pensamento do século XX. Qual é o papel de Lévi-Strauss?
2. Eduardo Viveiros de Castro − Lévi-Strauss é um intelectual que excede amplamente o quadro de sua disciplina, embora tenha sempre se preocupado em só falar como antropólogo. Lévi-Strauss é uma referência de seu tempo.
3. La Lettre − Tristes trópicos se apresenta como um testemunho nostálgico de um mundo que está em via de desaparecer, uma vez que a assim chamada civilização destrói a diversidade cultural e os biótopos.
4. Eduardo Viveiros de Castro − Lévi-Strauss parece pensar que a espécie está vivendo seus últimos séculos, visto que causa danos irreversíveis ao meio ambiente. Nossa espécie já enfrentou situações piores. Contudo, há motivo para inquietação. Como gerir a expansão demográfica neste momento em que a superpopulação oferece um perigo para nós mesmos? Talvez estejamos diante de um impasse antropológico, que é também biológico. A distinção entre natureza e cultura se apagou: se havia dúvida sobre o fato de essas duas "ordens" estarem imbricadas, agora não há mais. Vemos que a cultura é uma força natural, e que a natureza está envolvida em redes culturais. Portanto, é absurdo tentar distingui-las.
Talvez sejamos a única espécie em risco de se extinguir sabendo disso de antemão. Concomitantemente, no campo da ficção científica vai se desenvolvendo todo um imaginário em torno da salvação da espécie. A ficção científica é a metafísica popular do nosso tempo, nossa nova mitologia.
Lévi-Strauss insistia na convergência entre o pensamento selvagem e a vanguarda da ciência. Parece que o mais primitivo e o mais avançado se juntam desde o auge da modernidade.
(Trecho adaptado de entrevista com Eduardo Viveiros de Castro. Disponível em: www.scielo.br)
A correção gramatical e os sentidos do texto CG1A1-I seriam mantidos se a expressão “mas também” fosse substituída por
Acerca dos aspectos linguísticos do texto CG2A1AAA, julgue o próximo item.
O trecho “que os ricos preferiam tratar-se em casa” (ℓ.14)
expressa uma consequência do que se afirma nas duas
orações imediatamente anteriores, no mesmo período.
Texto CB1A1-III
A respeito dos sentidos e dos aspectos linguísticos do texto CB1A1-III, julgue o item subsecutivo.
A oração “não viu a condenação do conde brutal” (ℓ.15)
exprime o motivo, a causa por que a senhora furiosa
revoltou-se antes do tempo.
Texto I
Policiamento comunitário
A polícia pode adotar diferentes formas de policiamento. Uma delas é o policiamento comunitário, um tipo de policiamento que se expandiu durante as décadas de 1970 e 1980 quando as polícias de vários países introduziram uma série de inovações em suas estruturas e estratégias para lidar com o problema da criminalidade.
Apesar de essas experiências terem diferentes características, todas tiveram um aspecto comum: a introdução ou o fortalecimento da participação da comunidade nas questões de segurança.
Isso significa que as pessoas de uma determinada área passaram não só a participar das discussões sobre segurança e ajudar a estabelecer prioridades e estratégias de ação como também a compartilhar com a polícia a responsabilidade pela segurança da sua região. Essas mudanças tiveram como objetivo melhorar as respostas dadas aos problemas de segurança pública, tornando tanto a polícia mais eficaz e reconhecida como também a população mais ativa e participativa nesse processo.
É interessante notar que a Constituição brasileira ratifica esse tipo de policiamento ao estabelecer, em seu artigo 114, que a segurança pública não é apenas dever do Estado e direito dos cidadãos, mas responsabilidade de todos.
Essa nova forma de “fazer a segurança pública” é também resultado do processo de democratização das polícias. Em sociedades democráticas, as polícias desempenham várias outras funções além de lidar com o crime. Exige-se que ela esteja constantemente atenta aos problemas que interferem na segurança e bem-estar das pessoas e atenda às necessidades da população tanto de forma reativa (pronto-atendimento) como também pró-ativa (prevenção).
Os cidadãos, por sua vez, têm o direito e a responsabilidade de participar no modo como esse policiamento é realizado
SÃO PAULO. Manual de Policiamento Comunitário: Polícia e Comunidade na Construção da Segurança [recurso eletrônico] / Núcleo de Estudos da Violência da Universidade de São Paulo (NEV/USP). – Dados eletrônicos. - 2009.
Disponível em https://jundiai.sp.gov.br/administracao-e-gestao-de-pessoas/wp-content/uploads/sites/16/2016/02/Manual-Policiamento-Comunitario-SENASP-MJ.pdf > Acesso em 12 fev. 2019.
Com base no texto 3 e conforme a norma padrão escrita, é correto afirmar que:
Imigrações no Rio Grande do Sul
Em 1740 chegou à região do atual Rio Grande do Sul o primeiro grupo organizado de povoadores. Portugueses oriundos da ilha dos Açores, contavam com o apoio oficial do governo, que pretendia que se instalassem na vasta área onde anteriormente estavam situadas as Missões.
A partir da década de vinte do século XIX, o governo brasileiro resolveu estimular a vinda de imigrantes europeus, para formar uma camada social de homens livres que tivessem habilitação profissional e pudessem oferecer ao país os produtos que até então tinham que ser importados, ou que eram produzidos em escala mínima. Os primeiros imigrantes que chegaram foram os alemães, em 1824. Eles foram assentados em glebas de terra situadas nas proximidades da capital gaúcha. E, em pouco tempo, começaram a mudar o perfil da economia do atual estado.
Primeiramente, introduziram o artesanato em uma escala que, até então, nunca fora praticada. Depois, estabeleceram laços comerciais com seus países de origem, que terminaram por beneficiar o Rio Grande. Pela primeira vez havia, no país, uma região em que predominavam os homens livres, que viviam de seu trabalho, e não da exploração do trabalho alheio.
As levas de imigrantes se sucederam, e aos poucos transformaram o perfil do Rio Grande. Trouxeram a agricultura de pequena propriedade e o artesanato. Através dessas atividades, consolidaram um mercado interno e desenvolveram a camada média da população. E, embora o poder político ainda fosse detido pelos grandes senhores das estâncias e charqueadas, o poder econômico dos imigrantes foi, aos poucos, se consolidando.
(Adaptado de: projetoriograndetche.weebly.com/imigraccedMatMdeo-no-rs.html)
Após avanços tecnológicos, medicina deve mirar empatia
Médicos sempre ocuparam uma posição de prestígio na sociedade. Afinal, cuidar do maior bem do indivíduo – a vida – não é algo trivial. Embora a finalidade do ofício seja a mesma, o modus operandi mudou drasticamente com o tempo.
O que se pode afirmar é que o foco da atuação médica deve ser cada vez menos o controle sobre o destino do paciente e mais a mediação e a interpretação de tecnologias, incluindo a famigerada inteligência artificial. Já o lado humanístico, que perdeu espaço para os exames e as máquinas, tende a recuperar cada vez mais sua importância.
De meados do século 20 até agora, concomitantemente às novas especialidades, houve avanço tecnológico e a proliferação de modalidades de exames. Cresceu o catálogo dos laboratórios e também a dependência do médico em relação a exames. A impressão dos pacientes passou a ser a de que o cuidado é ruim, caso o médico não os solicite.
O tema é caro a Jayme Murahovschi, referência em pediatria no país. “Tem que haver progressão tecnológica, claro, mas mais importante que isso é a ligação emocional com o paciente. Hoje médicos pedem muitos exames e os pacientes também.”
Murahovschi está entre os que acreditam que a profissão está sofrendo uma nova reviravolta, quase que voltando às origens clássicas, hipocráticas: “Os médicos do futuro, os que sobrarem, vão ter que conhecer o paciente a fundo, dar toda a atenção que ele precisa, usando muita tecnologia, mas com foco no paciente.”
Alguns profissionais poderão migrar para uma medicina mais técnica, preveem analistas.
Esses doutores teriam uma função diferente, atuando na interface entre o conhecimento biomédico e a tecnologia por trás de plataformas de diagnóstico e reabilitação. Ou ainda atuariam alimentando com dados uma plataforma de inteligência artificial, tornando-a mais esperta.
Outra tecnologia já presente é a telemedicina, que descentraliza a realização de consultas e exames. Clínicas e médicos generalistas podem, rapidamente e pela internet, contar com laudos de especialistas situados em diferentes localidades; uma junta médica pode discutir casos de pacientes e seria possível até a realização, a distância, de consultas propriamente ditas, se não existissem restrições do CFM nesse sentido.
Até cirurgias podem ser feitas a distância, com o advento da robótica. O tema continua fascinando médicos e pacientes, mas, por enquanto, nada de droides médicos à la Star Wars – quem controla o robô ainda é o ser humano.
(Gabriela Alves. Folha de S.Paulo, 19.10.2018. Adaptado)
Observe os trechos destacados nas frases do texto.
• A impressão dos pacientes passou a ser a de que o cuidado é ruim, caso o médico não os solicite. (3° parágrafo)
• Até cirurgias podem ser feitas a distância, com o advento da robótica. (último parágrafo)
Nesses trechos, notam-se, correta e respectivamente, as ideias de
Assassinos culturais
Sou um assassino cultural, e você também é. Sei que é romântico chorar quando uma livraria fecha as portas. Mas convém não abusar do romantismo – e da hipocrisia. Fomos nós que matamos aquela livraria e o crime não nos pesa muito na consciência.
Falo por mim. Os livros físicos que entram lá em casa são cada vez mais ofertas – de amigos ou editoras.
Aos 20, quando viajava por territórios estranhos, entrava nas livrarias locais como um faminto na capoeira. Comprava tanto e carregava tanto que desconfio que o meu problema de ciática é, na sua essência, um problema livresco.
Hoje? Gosto da flânerie*. Mas depois, fotografo as capas com o meu celular antes de regressar para o psicanalista – o famoso dr. Kindle. Culpado? Um pouco. E em minha defesa só posso afirmar que pago pelos meus vícios.
E quem fala em livrarias, fala em todo o resto. Eu também ajudei a matar a Tower Records e a Virgin Megastore. Havia lá dentro uma bizarria chamada CD – você se lembra?
Hoje, com alguns aplicativos, tenho uma espécie de discoteca de Alexandria onde, a meu bel-prazer, escuto meus clássicos e descubro novos.
Se juntarmos ao pacote o iTunes e a Netflix, você percebe por que eu também tenho o sangue dos cinemas e dos blockbusters nas mãos.
Eis a realidade: vivemos a desmaterialização da cultura. Mas não é apenas a cultura que se desmaterializa e tem deixado as nossas salas e estantes mais vazias. É a nossa relação com ela. Não somos mais proprietários de “coisas”; somos apenas consumidores e, palavra importante, assinantes.
O livro “Subscribed”, de Tien Tzuo, analisa a situação. É uma reflexão sobre a “economia de assinaturas” que conquista a economia global. Conta o autor que mais de metade das empresas da famosa lista da “Fortune” já não existiam em 2017. O que tinham em comum? O objetivo meritório de vender “coisas” – muitas coisas, para muita gente, como sempre aconteceu desde os primórdios do capitalismo.
Já as empresas que sobreviveram e as novas que entraram na lista souberam se adaptar à economia digital, vendendo serviços (ou, de forma mais precisa, acessos).
Claro que na mudança algo se perde. O desaparecimento das livrarias não acredito que seja total no futuro (e ainda bem). Além disso, ler no papel não é o mesmo que ler na tela. Mas o interesse do livro de Tzuo não está apenas nos números; está no retrato de uma nova geração para quem a experiência cultural é mais importante do que a mera posse de objetos.
Há quem veja aqui um retrocesso, mas também é possível ver um avanço – ou, para sermos bem filosóficos, o triunfo do espírito sobre a matéria. E não será essa, no fim das contas, a vocação mais autêntica da cultura?
(João Pereira Coutinho. Folha de S.Paulo, 28.08.2018. Adaptado)
* Flânerie: ato de passear, de caminhar sem compromisso.
Em relação ao texto e a seus aspectos linguísticos, julgue o item.
A oração “como cada uma sustenta uma verdade diferente” (linhas 4 e 5) expressa, em relação à oração subsequente, circunstância de causa.
Irmãos em livros
Outro dia, num táxi, o motorista me disse que “gostava de ler” e comprava “muitos livros”. Dei-lhe parabéns e perguntei qual era sua livraria favorita. Respondeu que “gostava de todas”, mas, de há alguns anos, só comprava livros pela internet. Ah, sim? Comentei que também gostava de todos os táxis, mas, a partir dali, passaria a usar apenas o serviço de aplicativos. Ele diminuiu a marcha, como se processasse a informação. Virou-se para mim e disse: “Entendi. O senhor tem razão”.
Tenho amigos que não leem e não frequentam livrarias. Não são pessoas primitivas ou despreparadas – apenas não têm a bênção de conviver com as palavras. Posso muito bem entendê-las porque também não tenho o menor interesse por automóveis, pela alta cozinha ou pelo mundo digital – nunca dirigi um carro, acho que qualquer prato melhora com um ovo frito por cima e, quando me mostram alguma coisa num smartphone, vou de dedão sem querer e mando a imagem para o espaço. Nada disso me faz falta, assim como o livro e a livraria a eles.
No entanto, quando entro numa livraria, pergunto-me que outro lugar pode ser tão fascinante. São milhares de livros à vista, cada qual com um título, um design, uma personalidade. São romances, biografias, ensaios, poesia, livros de história, de fotos, de autoajuda, infantis, o que você quiser. O que se despendeu de esforço intelectual para produzi-los e em tal variedade é impossível de quantificar. Cada livro, bom ou mau, medíocre ou brilhante, exigiu o melhor que cada autor conseguiu dar.
Uma livraria é um lugar de congraçamento*. Todos ali somos irmãos na busca de algum tipo de conhecimento. E, como este é infinito, não nos faltarão irmãos para congraçar. Aliás, quanto mais se aprende, mais se vai às livrarias.
Lá dentro, ninguém nos obriga a comprar um livro. Mas os livros parecem saber quem somos e, inevitavelmente, um deles salta da pilha para as nossas mãos.
(Ruy Castro, Folha de S.Paulo, 07.12.2018. Adaptado)
* Congraçamento: ato ou efeito de congraçar(-se); conciliação, reconciliação.
Hostil mundo novo
Você já passou por isso. Nas últimas semanas, tenho sido torturado por computadores que ligam e desligam sozinhos, mouses travados, “reiniciações” lentas e outras deliciosas avarias. Ligo para o técnico e ele me instrui a ligar e desligar este ou aquele botão da torre, “usar o aplicativo” ou ficar de quatro, meter-me debaixo da mesa e desplugar tudo da parede, esperar cinco minutos e plugar de novo. Naturalmente, não dá certo.
Nem pode dar. Em jovem, sobrevivi aos zeros em matemática, física, estatística e outras ciências do diabo, e me concentrei apenas no que me interessava: português, história e línguas. Desde então, passei a vida profissional a bordo de um único veículo – a palavra. Com ela, tenho me virado em jornais, revistas, editoras de livros, rádios, TVs, auditórios, salas de aula e outros cenários onde a palavra seja chamada a dirimir dúvidas ou dinamitar certezas.
De repente, várias eras geológicas depois, em idade de não querer aprender mais nada, a tecnologia exige que eu me torne engenheiro eletrônico.
Cada vez mais funções dispensam o papel, a ida pessoal ao banco ou a conversa “presencial”. Para reinstalar a internet no computador, tenho de ligar um cabo enfiado na televisão. Desbloquear um cartão de crédito exige saber extrair uma raiz quadrada. A vida agora é online e cabe no bolso, mas, diante daquele inferno de teclas, plugues e botões sem sentido, pode-se perder tudo se digitar algo errado.
A tecnologia tornou o mundo hostil para os que não conseguem acompanhá-la. É verdade que ela não pode parar por causa de meia dúzia de macróbios incapazes de se atualizar. Acontece que, nós, os macróbios, não somos meia dúzia. Somos milhões e, graças à ciência e a nós mesmos, estamos ameaçados de viver até os cem anos. Pois, se for para chegar lá, que seja para continuar usando algo mais nobre do que apenas os polegares.
(Ruy Castro. Folha de S. Paulo. Disponível em:
https://www1.folha.uol.com.br/colunas/ruycastro/ 2018/10/
hostil-mundo-novo.shtml. Publicado em 28.10.2018)
O homem cuja orelha cresceu
Estava escrevendo, sentiu a orelha pesada. Pensou que fosse cansaço, eram 11 da noite, estava fazendo hora extra. Escriturário de uma firma de tecidos, solteiro, 35 anos, ganhava pouco, reforçava com extras. Mas o peso foi aumentando e ele percebeu que as orelhas cresciam. Apavorado, passou a mão. Deviam ter uns dez centímetros. Eram moles, como de cachorro. Correu ao banheiro. As orelhas estavam na altura do ombro e continuavam crescendo. Ficou só olhando. Elas cresciam, chegavam à cintura. Finas, compridas, como fitas de came, enrugadas. Procurou uma tesoura, ia cortar a orelha, não importava que doesse. Mas não encontrou, as gavetas das moças estavam fechadas. O armário de material também. O melhor era correr para a pensão, se fechar, antes que não pudesse mais andar na rua. Se tivesse um amigo, ou namorada, iria mostrar o que estava acontecendo. Mas o escriturário não conhecia ninguém a não ser os colegas de escritório. Colegas, não amigos. Ele abriu a camisa, enfiou as orelhas para dentro. Enrolou uma toalha na cabeça, como se estivesse machucado.
Quando chegou na pensão, a orelha saía pela perna da calça. O escriturário tirou a roupa. Deitou-se, louco para dormir e esquecer. E se fosse ao médico? Um otorrinolaringologista. A esta hora da noite? Olhava o forro branco, incapaz de pensar, dormiu de desespero.
Ao acordar, viu aos pés da cama o monte de uns trinta centímetros de altura. A orelha crescera e se enrolara como cobra. Tentou se levantar. Difícil. Precisava segurar as orelhas enroladas. Pesavam. Ficou na cama. E sentia a orelha crescendo, com uma cosquinha. O sangue correndo para iá, os nervos, músculos, a pele se formando, rápido. Às quatro da tarde, toda a cama tinha sido tomada pela orelha. O escriturário sentia fome, sede. Às dez da noite, sua barriga roncava. A orelha tinha caído para fóra da cama. Dormiu.
Acordou no meio da noite com o barulhinho da orelha crescendo. Dormiu de novo e quando acordou na manhã seguinte, o quarto se enchera com a orelha. Ela estava em cima do guarda-roupa, embaixo da cama, na pia. E forçava a porta. Ao meio-dia, a orelha derrubou a porta, saiu pelo corredor. Duas horas mais tarde, encheu o corredor. Inundou a casa. Os hóspedes fugiram para a rua. Chamaram a polícia, o corpo de bombeiros. A orelha saiu para o quintal. Para a rua.
Vieram os açougueiros com facas, machados, serrotes. Os açougueiros trabalharam o dia inteiro cortando e amontoando. O prefeito mandou dar a carne aos pobres. Vieram os favelados, as organizações de assistência social, irmandades religiosas, donos de restaurantes, vendedores de churrasquinho na porta do estádio, donas de casa. Vinham com cestas, carrinhos, carroças, camionetas. Toda a população apanhou carne de orelha. Apareceu um administrador, trouxe sacos de plástico, higiênicos, organizou filas, fez uma distribuição racional.
E quando todos tinham levado carne para aquele dia e para os outros, começaram a estocar. Encheram silos, frigoríficos, geladeiras. Quando não havia mais onde estocar a carne de orelha, cham aram outras cidades. Vieram novos açougueiros. E a orelha crescia, era cortada e crescia, e os açougueiros trabalhavam. E vinham outros açougueiros. E os outros se cansavam. E a cidade não suportava mais carne de orelha. O povo pediu uma providência ao prefeito. E o prefeito ao governador. E o governador ao presidente.
E quando não havia solução, um menino, diante da rua cheia de carne de orelha, disse a um policial: “Por que ó senhor não mata o dono da orelha?”
(Ignácio de Loyoia Brandão, Os melhores contos de Ignácio de
Loyola Brandão. Seleção de Deonísio da Silva. São Paulo:
Global, 1993. p.135.)