Lei o texto a seguir
DO TEMPO
Faz alguns anos tive, num sonho, um vislumbre de uma
escultura interminável de corpos humanos entrelaçados
emergindo muito abaixo de mim e perdendo-se no infinito
acima de minha cabeça.
Talvez seja um dos significados da existência nossa:
encadeamento e continuação. Como um novelo
desenrolando-se incessantemente, todos nascendo uns
dos outros, uns por cima dos outros, cada um estendendo
as mãos para o alto um milímetro mais e mais e mais:
somos novelo e fio ao mesmo tempo.
Meu gesto repete o de uma de minhas antepassadas;
meu riso será o de algum descendente meu, que jamais
conhecerei, o fio primeiro de minhas ideias nasce de outro
pensamento milênios atrás, e continuará se desenrolando
depois que eu tiver deixado de existir há séculos. Em meus
filhos e netos, vejo com surpresa a repetição de um jeito
de falar, de pensar, de virar o rosto, a figura toda, a mão,
de quem me antecedeu. É a noção de um tempo que não
flui como o imaginamos, esse tempo medido e calculado.
Ele é pulsação, surpresa.
Às vezes suspiramos pelo conforto que, vista de longe,
parecia ser a vida quando tudo era mais limitado e certo:
menos opções, menos possibilidade de erro. Temos de
aprender a conviver com essas novas engrenagens de
tanta surpresa e perplexidade, mas tanta maravilha. Temos
de estar mais alertas do que décadas atrás, quando a vida
era – ou hoje nos parece – tão mais simples: precisamos
estar mais preparados, para que ela não nos dilacere.
Temos de ser múltiplos, e incansáveis.
Que cansaço.
Pois a vida não anda pra trás: o preço da liberdade são
as escolhas com seu cortejo de esperança, entusiasmo,
hesitação e angústia – para que se criem novos contextos e
se realizem novas adaptações, que podem não ser
estáveis.
As inovações, a corrida do tempo e as possibilidades
aparentemente infinitas já nos puxam pela manga e nos
convidam para outra ciranda de mil receitas: vamos ser
inventivos, vamos ser produtivos e competentes, felizes a
qualquer preço na companhia de todos os deuses e
demônios nessa sarabanda.
Fora dela, nos dizem, restam o tédio, a paralisia ou o
desespero. Será mesmo assim?
Ou ainda existem, e podemos descobrir, lugares ou
momentos de tranquilidade onde se realiza a verdadeira
criatividade, onde podemos expandir a mente, onde
podemos amar as pessoas, onde podemos contemplar a
natureza, a arte, e os rostos amados, e construir alguma
paz interior? Creio que sim.
Para que as emoções e inquietações positivas da alma
não entrem em coma antes que termine de definhar o
corpo.
(Lya Luft - as coisas humanas – 1ª edição – Editora Record – Rio de
Janeiro. São Paulo – 2019)