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Solidariedade
(Ferreira Gullar)
Décio, poeta e filósofo radical, vive desde menino as
contradições da condição humana. No quintal de sua
casa, no Andaraí, observou uma turma de saúvas
devastando uma planta. Com pena da planta, tratou de
espantar as saúvas, mas com cuidado, para também
não machucá-las. Pegava-as uma por uma e ia
arrancando-as da pobre planta já bastante mutilada. Só
que as saúvas eram muitas e não estavam dispostas a
desistir de sua tarefa: enquanto tirava esta, aquela
subia pelo caule, outra decepava um talo, outra fugia
carregando um pedaço de folha, e a que ele tirara
antes já voltava à planta. Nervoso e já perdendo a
paciência, Décio compreendeu que a única maneira de
salvar a planta era matar as saúvas. Diante dessa
constatação, desistiu: por que haveria de salvar uma
vida e eliminar muitas outras? Abandonou a planta à
sanha das saúvas que, com mais rapidez ainda, a
devastaram. É, pensou Décio, não tenho que intervir
nesse processo natural, as saúvas também precisam de
comer e, se não comerem plantas, morrerão de fome.
Esse incidente contribuiu para mostrar-lhe a dura
realidade da vida: um comendo o outro.
Mas isso não o tornou menos solidário com as pessoas
e os seres que necessitam de ajuda. Ou seja, em lugar
de fugir das contradições, Décio mergulha nelas,
enfrenta-as como um Quixote, e sofre-lhes as
consequências. Assim é que, numa viagem de ônibus
do Rio para São Paulo, sentado no último banco,
suportou sem reclamar a companhia de um bêbado que
ora roncava, ora jogava-se sobre seu ombro, ora caía
em seu colo e terminou por vomitá-lo todo. Finda a
viagem, Décio, preocupado com seu incômodo
companheiro de viagem, desceu com ele do ônibus,
perguntou-lhe o endereço e o pôs atenciosamente num
táxi.
Certa tarde, a mãe lhe pediu que fosse à rua fazer
algumas compras para o jantar. Na esquina adiante,
Décio vê caído na calçada um homem que ele, dias
atrás, levara até o pronto-socorro do hospital Moncorvo
Filho, ali perto: bêbado, ele sangrava com a testa
quebrada. Agora, estava ali outra vez, de porre, o
esparadrapo na testa. Décio aproximou-se, ajudou-o a
se erguer e o aconselhou a ir para casa. O homem, que
mal se mantinha em pé, apoiou-se no ombro de Décio.
– Onde mora? – perguntou ele ao bêbado. – Ali. – Vou
levar você lá – disse Décio, agarrando o homem demodo a poder conduzi-lo. Mal atravessaram a rua, o
homem quis entrar no boteco em frente. Décio cedeu,
ele pediu duas cachaças, sendo que uma era para o
Décio, que não bebe nem chope. – Vai beber,
compadre, ou não é meu amigo! Que remédio! Décio
deu uma bicada na cachaça ordinária, cuspiu, esperou
que o outro engolisse a sua dose e o arrastou para fora
do botequim, depois de pagar a bebida com o dinheiro
das compras, que, de seu, não tinha um tostão no
bolso.
Para encurtar a conversa, chegaram na casa
assobradada e velha onde morava o bêbado. Subiu
com ele por uma escada íngreme como o Monte Santo,
num esforço sobre-humano para evitar que seu
protegido rolasse escada abaixo. Ao final da subida,
deparou com um cômodo todo dividido por tabiques,
lençóis estendidos e folhas de jornal, constituindo os
diversos “quartos” onde moravam os hóspedes. Mas,
no momento, quase todos em cuecas ou nus da cintura
pra cima, formavam rodas de jogo: baralho, dama ou
dominó. E o bêbado entendeu de apresentar o Décio a
todos os presentes, interrompendo-lhes a jogatina. Era
repelido com palavrões. Décio, constrangido, pedia
desculpas pelo outro. Até que, não se sabe ao certo por
quê, a casa foi invadida por policiais armados que
levaram todo mundo em cana, inclusive Décio, que não
pôde explicar o que fazia naquele antro de marginais.
GULLAR, Ferreira. Crônicas para jovens / seleção,
prefácio e notas bibliográficas Antonieta Cunha. – 1ª
ed. – São Paulo: Global, 2011. (Coleção Crônicas para
jovens).