Um Brasil de cidades
Por Washington Fajardo
Em 2024, empurraremos a pedra da esperança para cima da montanha da realidade, como Sísifos
urbanos, votando novamente em prefeitos. A escolha das lideranças locais deveria ser a forma mais exitosa
da democracia representativa, pela proximidade entre cidadão e político, mas comumente converte-se em
frustração com duração de quatro anos. O Brasil é um país de cidades, com gigantesco contingente humano
dentro da urbanização, vivendo dilemas que futuros prefeitos precisarão saber manejar e equacionar. O
Censo evidenciou a consolidação da interiorização do país, cuja nova geografia aponta risco de redução da
complexidade econômica justamente pela eficiência das commodities extrativistas-exportadoras, incapazes,
entretanto, de impulsionar o mercado de trabalho “metropolinizado” e envelhecido.
Os brasileiros vivem em conurbações, deslocando-se entre municípios altamente assimétricos,
desesperados por serviços públicos de qualidade, buscando oportunidades não em utópicas cidades de 15
minutos, mas em manchas urbanas com no mínimo duas horas de viagem, lidando há décadas com violência
e medo. Apesar dessa conjuntura labiríntica, votamos em prefeitos que conseguem atuar em partes do
problema, em governadores que não organizam as metrópoles e em presidentes que têm agendas de
macroescala. Quem está de fato cuidando do chão onde o povo mais urbanizado do planeta vive?
A União vem ganhando nas últimas décadas um perigoso perfil moralista de exclusivo garantidor da
cidadania, como formulador, financiador e implementador de programas e projetos, retroalimentando
infatigavelmente a polarização política. Os governos estaduais são medíocres em viabilizar a integração da
mobilidade metropolitana e em expandir a oferta de transporte de alta capacidade, o básico rudimentar. A
insegurança brutal mostra que o escopo de trabalho dos governadores precisa ser logo revisado. Melhor seria
elegermos síndicos de metrópoles. Sobram, então, na base, os prefeitos que, se não tiverem visão
estratégica, serão apenas tarefeiros de programas federais. Ou bajuladores de governadores inúteis.
Os fundamentos da Nova Democracia vieram das cidades e das lutas urbanas em polinização
cruzada, formando uma união pelas partes. A genialidade do Estatuto da Cidade residia no fato de ter
conseguido coletar experiências locais, vislumbradas na Reforma Urbana, sistematizadas e dando-lhes
relevância de política pública nacional, funcionando como metodologias que outras cidades poderiam então
acessar. O desenho municipalista da nossa Constituição, exagerado até, não viabilizou em 35 anos cidades
melhores. Precisamos urgentemente de resultados para o desenvolvimento urbano brasileiro semelhantes
aos do Plano Real e do Bolsa Família.
Isso ocorre porque Brasília seduz e exerce um controle exagerado. O Planalto Central
agressivamente amplia a tutela sobre a vida nacional, atuando de cima para baixo na forja de soluções locais,
mas com rarefeita eficácia. Assim tem sido no subsídio da moradia popular racionalista e positivista, no apoio
ao rodoviarismo anacrônico, no saneamento vacilante, no silêncio avassalador sobre o financiamento do
transporte público. Brasília joga em todas as posições quando deveria ser um técnico orientando jogadores,
observando como o jogo se desenvolve, cobrando resultados, dando broncas, valendo-se de métricas,
indicadores e premiações, mas não entrando em campo, como faz com frequência.
O resultado é uma redução drástica das inovações nas cidades, ao contrário do processo que deu
origem aos alicerces institucionais da gestão urbana do Brasil contemporâneo. O colossal desafio de
ressignificação, revitalização e repovoamento dos centros das cidades brasileiras, uma enxaqueca para
prefeitos, nem sequer é percebido como relevante pelo governo federal. Nesse quadro, os prefeitos precisam
saber cocriar soluções com os cidadãos, responder efetivamente à desigualdade, à crise climática e ao ocaso
da infraestrutura e da habitação, compreender e não temer o urbanismo, meio pelo qual se pode melhorar a
qualidade de vida. E, aos eleitores, cabe votar na ousadia, para que nossas cidades possam ser de novo, um
dia, as fontes de inspiração das políticas nacionais, e não o contrário.
*Washington Fajardo é arquiteto e urbanista
Disponível em: https://oglobo.globo.com. [Adaptado]