Solidariedade: gesto plural
Eu estava aqui pensando um pouco na
expressão da solidariedade, do amor fraternal... Eu
gostaria muito de acreditar que as organizações do
Terceiro Setor, as ONGs e similares são espaços
contemporâneos para esse fim. Não gosto de
generalizar, deve haver alguns casos em que isso
seja verdade, sempre existiram na história da
humanidade, mas penso que na maioria das vezes
não é assim.
Acho que há duas vertentes dignas de nota
sobre o tema. Uma é o fato de que é considerado
politicamente correto fazer parte dessas
organizações e todo mundo quer sair bem na foto.
Hoje em dia, quando alguém vai a uma entrevista de
emprego ou solicita uma bolsa de estudos, sempre é
perguntado se a pessoa trabalha como voluntária.
Portanto, esse é um dado entendido como positivo no
currículo. Essa talvez seja uma resposta cínica, mas
acho que acontece sim, e muito.[...] Por outro lado, na segunda vertente, há uma
realidade que me impressiona muito. Conto um
pouco de minha experiência para exemplificar.
Atualmente, há pouco convívio da família estendida,
dos primos, entre outros familiares. No entanto,
minha família é muito grudada. [...].
Houve uma época, por exemplo. em que três
deles - uma filha e dois sobrinhos - davam aula num
curso pré-vestibular comunitário na Rocinha. Não sei
detalhes sobre os horários dos outros, mas minha
filha, todas as sextas-feiras à noite, durante dois
anos, ia dar aula sem ganhar nada, ou melhor, sem
remuneração. [...]
Entre meus outros sobrinhos, há um que fez
medicina e, quando se formou, disse que não poderia
se considerar médico se não fizesse alguma coisa
pelos outros, num lugar que precisasse muito de
assistência. Não foi nada fácil viabilizar seu projeto,
mas ele acabou indo como voluntário, pelo exército,
para a Amazônia. [...]
Então, acho que existem, sim, histórias muito
bonitas de diferentes formas de solidariedade. Estou
dando apenas alguns exemplos próximos, mas acho
que, atualmente, isso, de alguma forma, substitui a
militância partidária que caracterizou a geração
anterior, dos pais deles. Todos os meus irmãos
tiveram algum tipo de engajamento, participaram do
movimento estudantil ou coisa parecida. Hoje, não é
mais essa a via de atuação social, mas fomos criados
desse modo e criamos nossos filhos assim. [...] No
caso das novas gerações, os jovens estão
trabalhando pelo outro, pela coletividade, enquanto
seus pares estão na balada de sexta-feira à noite -
enfim, é mais invisível. Acho que isso é uma expressão genuína de algo que podemos chamar de
fraternidade.
Ana Maria Machado e Moacyr Scliar. Amor em texto, amor em contexto - Um diálogo entre escritores. Campinas. São Paulo:
Papirus 7 Mares, 2009.P.62-66. Fragmento.