O Galão d’água
Reproduzo o relato que minha filha recebeu pelo
whatsapp de uma garota brasileira que mora no Japão.
Ontem veio um homem aqui e deixou um galão d'água na
frente da minha porta. Disse que durante a madrugada
eles fariam uma vistoria nos encanamentos de água do
bairro e por isso estavam passando para avisar, deixar o
galão e pedir desculpas por terem que desligar o registro
de água por algumas horas. Eu disse para ele que não
precisava deixar a água, afinal, estaríamos dormindo nesse
horário, mas ele respondeu: “Você paga suas contas todos
os meses e nós temos obrigação de não deixar você sem
água nem por um minuto.” E ainda disse: “Se precisar de
mais, pode pedir.” E assim seguiu a distribuir nas outras
casas. Durante a madrugada, olhei pela janela e havia um
grupo trabalhando nas ruas em silêncio. Hoje vieram
novamente, casa por casa, só para agradecer.
Pois é.
Não é assim que deveria ser tudo na vida? Decência,
responsabilidade e educação: por que é tão raro, tão
complicado? A simplicidade da cena: um galão d’água
deixado de porta em porta para o caso de os moradores
terem alguma eventual necessidade às duas horas da
manhã, às três horas da manhã. Não é caridade, e sim
direito do cidadão que paga taxas e impostos. Eu não
deveria me comover com isso, mas me comovo, porque a
gente cumpre com os compromissos como qualquer
japonês, qualquer sueco, qualquer canadense, mas onde
está a contrapartida? Acho que isso explica nossa
desesperança de que uma eleição mude alguma coisa. Já
não acreditamos que um candidato consiga não se deixar
corromper pelo poder, que possa governar sem dever
favores para outros partidos, que solucione as mazelas do
povo em detrimento das negociatas de gabinete. Política
passou a ter um sentido desvirtuado.
Ninguém obriga um homem ou uma mulher a se
candidatar a um cargo público. Se ele se oferece para a
missão de governar, deveria fazer isso unicamente por seu
espírito altruísta. Mas soa como piada. Altruísmo na
política brasileira. Tem graça.
Um galão d’água na porta. Um serviço de atendimento ao
consumidor que funcione de forma fácil.
Um policial em cada esquina. Nota fiscal entregue em
todas as transações comerciais. Lixeiras por toda parte.
Ruas bem sinalizadas. Transporte farto, barato e que
cumpra horários. Hospitais com vagas dia e noite. Escolas
eficientes. Confiança em vez de burocracia. Sinceridade em
vez de enrolação. Agilidade em vez de empurrar com a
barriga. Se todo mundo concorda que é assim que tem que
ser, por que não acontece, quem emperra?
Não é só culpa de quem governa, mas dos governados
também. Viciados em retórica, seduzidos por vantagens
exclusivas e não coletivas, sempre nos perguntando “como
posso faturar com essa situação?”, não permitimos que o
Brasil se moralize e avance.
Galão d’água na porta de casa? Só com um troquinho por
fora, meu irmão.
(O GLOBO, Marta Medeiros, 2014)