Atenção: Leia atentamente o texto a seguir e responda a questão:
Tem alguém aí?
Publicado em 13/10/2023
Paulo Pestana
Crônica
Cheguei para uma reunião de trabalho um pouco antes do horário combinado e a secretária da
autoridade pôs uma caixinha de madeira sobre a mesa, e avisou: é para deixar o telefone quando entrar. Na hora
não entendi, mas um companheiro mais escolado me socorreu. “É para evitar grampo”, disse. “Medo de ser
gravado”.
Eu sempre penso em mim como um sujeito de confiança. É uma das minhas raras virtudes, acho eu. Só
falo mal de pessoas que merecem espinafração. Mas na antessala daquele gabinete, a autoridade deixava claro
que não confiava em mim; mas antes que eu começasse a ficar amuado, fui me lembrando que na verdade eu
sou suspeito.
Afinal, só um suspeito é vigiado 24 horas por dia, sete dias por semana, como acontece comigo. Não
____ um lugar em que eu vá que não tenha uma câmera acompanhando meus movimentos e agora sei como
se sentia Ubaldo, o Paranoico, personagem das tirinhas do Henfil1, que tinha certeza de que estava sendo
vigiado.
Encerrado o assunto com a autoridade, não resisti ____ um chiste quando ele perguntou se eu havia
entendido a nossa conversa. “Está tudo gravado”, eu disse. Antes que ele tivesse um sobressalto, apontei para
a cabeça. “Aqui”. Deixei escapar um sorriso, mas ele não pareceu entender. Depois me caiu a ficha: eu não havia
gravado nada, mas não tinha tanta certeza de não ter sido gravado por alguma câmera escondida.
Saindo dali fui ____ farmácia depois de ter passado por uns três pardais de trânsito; lá dentro havia o
cartaz – “Sorria, você está sendo filmado”. Embora o cartaz estivesse escondido atrás de uma estante, pelo
menos era um aviso. No supermercado não vi aviso, mas tinha câmera; até ajeitei a camisa dentro da calça.
O fato é que dá saudade dos tempos em que as únicas câmeras escondidas eram as dos programas de
televisão que mostram pegadinhas, para flagrar incautos em situações constrangedoras. Hoje todo mundo é um
potencial espião – e ao mesmo tempo está sendo vigiado – como aquele velho quadrinho da revista Mad: Spy
vs. Spy2.
Na Feira do Paraguai3
, tem botão de camisa que grava até duas horas de vídeo de boa qualidade[,]
microfone disfarçado de brochinho e ligado a um gravador fica nas costas ou no bolso[,] captadores de som do
tamanho de uma unha que pode ser deixado num canto da sala e transmitir para um gravador colocado fora do
ambiente[,] relógio que filma sem atrasar as horas e mais um bocado de tralha para vigiar a vida alheia.
No mundo virtual é pior. Consultar ou comprar pelo computador equivale a entregar um pouquinho da
nossa alma. Comprei o livro Trinta Segundos Sem Pensar no Medo, de Pedro Pacífico, e no mesmo momento
em que fechava a conta, me ofereceram cinco outros livros que “poderiam interessar” ____ mim. Estou fichado.
No fim, resta um consolo: pode ser que eu não me conheça direito, mas o computador da Amazon4 sabe
exatamente quem sou e o que quero. É o meu analista.
1 Henrique de Souza Filho (Ribeirão das Neves MG 1944 - Rio de Janeiro RJ 1988). Cartunista, jornalista, escritor. (Fonte:
https://enciclopedia.itaucultural.org.br/pessoa5430/henfil)
2 Série de quadrinhos publicada na revista de humor Mad. Criada por Antonio Prohias, sua primeira aparição foi em 1961. Satiriza a
espionagem da Guerra Fria e depois os filmes e séries do gênero, populares a partir da década de 1960. (Fonte:
https://www.techtudo.com.br/tudo-sobre/papel-de-parede-spy-vs-spy/)
3 Conhecida oficialmente como Feira dos Importados de Brasília. (Fonte: https://www.feirabrasilia.com.br/feira-dos-importados/)
4 Sítio eletrônico de comércio varejista online com atuação mundial. (Fonte: https://www.amazon.com/)
(Fonte: https://blogs.correiobraziliense.com.br/paulopestana/tem-alguem-ai/. Adaptado.)