Apoiado no parapeito, Yaqub olhava os passantes que
subiam a rua na direção da praça dos Remédios. Por ali
circulavam carroças, um e outro carro, cascalheiros
tocando triângulos de ferro; na calçada, cadeiras em
meio círculo esperavam os moradores para a conversa
do anoitecer; no batente, das janelas, tocos de velas
iluminariam as noites da cidade sem luz. Fora assim
durante os anos da guerra: Manaus às escuras, seus
moradores acotovelando-se diante dos açougues e
empórios, disputando um naco de carne, um pacote de
arroz, feijão, sal ou café. Havia racionamento de energia,
e um ovo valia ouro.
Zana e Domingas acordavam de madrugada, a
empregada esperava o carvoeiro, a patroa ia ao
Mercado Adolpho Lisboa e depois as duas passavam a
ferro, preparavam a massa do pão, cozinhavam. Quando
tinha sorte, Halim comprava carne enlatada e farinha de
trigo que os aviões norte-americanos traziam para a
Amazônia. Às vezes, trocava víveres por tecido
encalhado: morim ou algodão esgarçado, renda
encardida, essas coisas. Conversavam em volta da
mesa sobre isso: os anos da guerra, os acampamentos
miseráveis nos subúrbios de Manaus, onde se
amontoavam ex-seringueiros.
(Hatoum, M. Dois irmãos. http://dynamicon.com.br/wpcontent/uploads/2017/02/Dois-irm%C3%A3os-de-MiltonHatoum.pdf)