Os que regressavam consigo, clérigos, astrólogos genoveses, comerciantes judeus, aias,
contrabandistas de escravos, brancos pobres do Bairro Prenda, do Bairro da Cuca, abraçados
a volumes de serapilheira, a malas atadas com cordéis, a cestos de verga, a brinquedos
quebrados, formavam uma serpente de lamentos e miséria aeroporto adiante, empurrando a
bagagem com os pés (na faixa reservada aos passageiros em trânsito passavam islandeses
altos e desgrenhados como pássaros de rio) na direcção de uma secretária a que se sentava,
em um escabelo, um escrivão que lhe perguntou o nome (Pedro Álvares quê?), o conferiu
numa lista datilografada cheia de emendas e de cruzes a lápis tirou os óculos de ver ao perto
para o examinar melhor, inclinado de banda no poleiro de fórmica, passeou o polegar
errático no bigode e inquiriu de repente Tendes família em Portugal?, e eu disse Senhor não,
muito depressa, sem pensar, porque a minha velha se finou de icterícia há seis anos e dos
tios que aqui permaneceram quase não me recordo ou não me recordo nunca, ignoro se
ficaram em Coruche e se ficaram onde moram, com quem moram, quantos filhos têm, se
estão vivos.
ANTUNES, António Lobo. As naus. Rio de Janeiro: Objetiva, 2011.