A lixeira
Um dia, quando lhe perguntarem onde é que nasceu, a
moça poderá responder, sorrindo: “na lixeira”. Pois realmente
foi ali que a jogaram, entre cascas de banana e borra de café,
para que não vivesse; e foi dali que a retiraram, viva, para que
desse testemunho: até numa lixeira a vida pode começar.
O suposto nascimento anterior, num quarto, não vale
para essa menina da rua Pedro América; ele se consumou na
clandestinidade, a contragosto da mãe, talvez sem que o pai
tivesse notícia, e mesmo sem que a mãe tivesse notícia do pai.
Não era desejado, não veio precedido de amor, mas de vergonha, medo, angústia, recriminação. Quem nasce sob tais condições negativas é como se não nascesse, e a lixeira foi o instrumento providencial que ocorreu à mãe dessa menina errada, para anular, em escala individual, o efeito da explosão
demográfica. Enquanto não se decide a construção de crematórios para os que acabam regularmente, aí está, para os
que começam irregularmente, o incinerador do lixo doméstico. Nem seria preciso queimar a menina, com os demais detritos da casa. A morte viria logo — necessária, oportuna,
benfazeja.
Mas, naquele dia, a lixeira reagiu de forma imprevista,
abstendo-se de cumprir a missão que já tantas mães solteiras,
desesperadas ou não, lhe confiaram. Ficou surda aos argumentos sociais, morais e econômicos que demonstram a
inconveniência de salvar-se uma vida de origem equívoca e de
custeio incerto. Guardou a menina como lixeira pode guardar,
sem qualquer cuidado higiênico ou resquício de conforto, mas
guardou-a. Não lhe abafou o chorinho com o desmoronamento de um pacote de restos de cozinha, ou a queda de uma
lata vazia de pessegada sobre a cabeça. Na verdade, estimulou-a a chorar e bradar, dando-lhe ar pútrido e temperatura de
fornalha, para que melhor protestasse e atraísse, pelo sofrimento revoltado, a atenção do faxineiro.
E chegou o faxineiro e tirou daquelas entranhas estranhas a recém-nascida, como o obstetra faz o parto. Estava
nascendo, na porcaria, uma criança; e outro menino não
nasceu, faz muito tempo, num cocho de comida de animais,
no estábulo, entre o farelo e o milho? A lixeira pode fazer as
vezes de maternidade, berçário moderno para a vida que
quer manifestar-se de qualquer modo e não encontra outra
saída. O obscuro humanitarismo, a piedade e a simpatia
dessa lixeira, não salvaram, criaram a vida. Foi lá que a
criança verdadeiramente nasceu, quando os seres humanos,
a ordem econômica e os últimos preconceitos lhe negaram
ou lhe impediram a existência.
A menina, mais tarde, poderá dizer com alegria reconhecida: “devo a vida a uma lixeira, foi nela que vim ao
mundo”. E nós também devemos alguma coisa a essa lixeira:
a lição de respeito à vida.
(Carlos Drummond de Andrade. Caminhos de João Brandão. In Poesia e
Prosa. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1988. Adaptado.)