Memórias de um aprendiz de escritor
Escrevo há muito tempo. Costumo dizer que, se ainda não
aprendi – e acho que não aprendi, a gente nunca para de
aprender – não foi por falta de prática. Porque comecei muito
cedo. Na verdade, todas as minhas recordações estão ligadas a
isso, a ouvir e contar histórias. Não só as histórias dos personagens que me encantam, o Saci-Pererê, o Negrinho do Pastoreio, a Cuca, Hércules, Teseu, os Argonautas, Mickey Mouse,
Tarzan, os Macabeus, os piratas, Tom Sawyer, Sacco e Vanzetti.
Mas também as minhas próprias histórias, as histórias de meus
personagens, estas criaturas reais ou imaginárias com quem
convivi desde a infância.
Na verdade, eu escrevi acima. Verdade é uma palavra
muito relativa para um escritor de ficção. O que é verdade, o
que é imaginação? No colégio onde fiz o segundo grau, o Júlio
de Castilhos, havia um rapaz que tinha fama de mentiroso.
Fama, não; ele era mentiroso. Todo mundo sabia que ele era
mentiroso. Todo mundo, menos ele.
Uma vez, o rádio deu uma notícia alarmante: um avião em
dificuldade sobrevoava Porto Alegre. Podia cair a qualquer momento. Fomos para o colégio, naquele dia, preocupados; e
conversávamos sobre o assunto, quando apareceu ele, o mentiroso. Pálido:
– Vocês não podem imaginar!
Uma pausa dramática, e logo em seguida:
– Sabem este avião que estava em perigo? Caiu perto da
minha casa. Escapamos por pouco. Gente, que coisa horrível!
E começou a descrever o avião incendiando, o piloto gritando por socorro... Uma cena impressionante. Aí veio um colega correndo, com a notícia: o avião acabara de aterrizar, são e
salvo. Todo mundo começou a rir. Todo mundo, menos o mentiroso:
– Não pode ser! – Repetia, incrédulo, irritado. – Eu vi o
avião cair!
Agora, quando lembro este fato, concluo que não estava
mentindo. Ele vira, realmente, o avião cair. Com os olhos da
imaginação, decerto; mas para ele o avião tinha caído, e tinha
incendiado, e tudo mais. E ele acreditava no que dizia, porque
era um ficcionista. Tudo que precisava, naquele momento, era
um lápis e papel. Se tivesse escrito o que dizia, seria um escritor;
como não escrevera, tratava-se de um mentiroso. Uma questão
de nomes, de palavras.
(SCLIAR, Moacyr. Memórias de um aprendiz de escritor. Editora Ibep
Nacional. 2005.)