As cores do silêncio
Bem, chega de falar de política. Hoje vou falar de uma
coisa silenciosa chamada pintura.
Porque acho que a vida é inventada por nós – mas, claro,
dentro das possibilidades reais – creio também, consequentemente, que o acaso desempenha um papel importante nessa
invenção. E na arte também, sem dúvidas.
Mas o artista, para inventar sua obra, trabalha dentro
de determinados princípios que descobre e de que se vale
para impor sua inventividade poética sobre o acaso.
No fundo a criação artística é resultado da opção que o
artista faz entre sua necessidade de criar e os fatores casuais
que envolvem a criação. Em suma, ele torna necessário o
que era mera probabilidade.
Descubro esses pensamentos ao rever um álbum de
obras de Van Gogh. Embora já as conhecesse de longa data,
descubro nelas, ainda sim, que a pintura dele é de fato diferente de tudo o que se pintava antes. Todo mundo hoje sabe
disso, claro, mas tive a impressão de que só então, ao rever
suas telas, percebia por quê.
E isso me levou a refletir sobre o que era a pintura, antes
dele, feita pelos impressionistas. Já falei aqui da diferença entre a pintura de ateliê – realizada dentro de casa – e a pintura
impressionista, feita ao ar livre.
Os pintores impressionistas descobriram a cor da paisagem sob a luz solar, a vibração da luz sobre a superfície das
coisas. E, ao descobri‐las, descobriram também que o colorido da paisagem muda com o passar das horas: descobriram
o tempo. É exemplo disso a série de quadros em que Monet
mostra a catedral de Rouen em momentos diferentes do dia.
A descoberta da realidade que muda a cada minuto
gerou uma pintura de pinceladas fluentes, que provocariam
em Cézanne uma reação contrária: ele queria que a nova
pintura se ajustasse a uma estrutura permanente, que ele
admirava nas obras dos museus.
Daí sua opção inovadora, que geraria o cubismo, nascido dessa visão que queria mudar o mundo em pintura, de tal
modo que as maçãs que ele pintou não pretendiam ser a cópia da maçã real: eram pintura.
Não sei que efeito teve essa nova visão da pintura sobre
Van Gogh. A verdade é que, no começo, ele quis fazer da pintura a cópia dramática do sofrimento humano, particularmente dos mineiros de Borinage. Van Gogh que vai fascinar
as pessoas e mudar a linguagem pictórica surge depois que
ele conhece a pintura dos impressionistas e especialmente do
impressionismo pontilhista.
Essa mudança da pintura de Van Gogh, que abandona as
cores soturnas para entregar‐se ao colorido vibrante dos quadros neoimpressionistas é surpreendente, mas, sem dúvida,
própria de uma personalidade que oscila entre atitudes e reações extremadas.
De qualquer modo, por mais surpreendente que seja essa
mudança em seu modo de pintar, ela corresponde a uma
necessidade indiscutível, legítima, tal a extraordinária força
expressiva que constatamos nesses quadros. A conclusão inevitável é que foi na pintura que a personalidade complexa e
angustiada de Van Gogh encontrou afinal o modo feliz de
inventar‐se. Pintando, ele era saudável.
Mas é necessário acentuar que, a partir da incursão do
pontilhismo, Van Gogh descobre seu próprio caminho, tornando-se criador de um universo pictórico que me fascina e
fascina a todos que dele tomam conhecimento. E, no meu caso
pelo menos, quanto mais o frequento, mais novo o descubro.
A verdade é que descobri o que eu já sabia, mas não sabia
tanto. É que, na sua pintura, os capinzais, os arbustos, os roseirais, os pinheiros, o céu estrelado, não são os que conhecemos:
são uma outra realidade por ele criada, feita de pastas de cor,
de pinceladas inesperadas que transformam a paisagem num
mundo gráfico‐pictórico, enfim, em algo que só existe ali, nas
telas por ele pintadas.
Não sei se consigo expressá‐lo: o que está em suas telas
não é a paisagem real. Como Cézanne, mas em outra linguagem, ele mudou o mundo em pintura e a pintura em fascinante delírio. A natureza é bela, mas a beleza de suas telas é
outra, é invenção humana.
(GULLAR, Ferreira. As cores do silêncio. Folha de São Paulo. Agosto de 2014.)