“Bem, chega de falar de política. Hoje vou falar de uma cois...
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Ano: 2023
Banca:
Instituto Consulplan
Órgão:
IF-PA
Provas:
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Q2161759
Português
Texto associado
As cores do silêncio
Bem, chega de falar de política. Hoje vou falar de uma
coisa silenciosa chamada pintura.
Porque acho que a vida é inventada por nós – mas, claro,
dentro das possibilidades reais – creio também, consequentemente, que o acaso desempenha um papel importante nessa
invenção. E na arte também, sem dúvidas.
Mas o artista, para inventar sua obra, trabalha dentro
de determinados princípios que descobre e de que se vale
para impor sua inventividade poética sobre o acaso.
No fundo a criação artística é resultado da opção que o
artista faz entre sua necessidade de criar e os fatores casuais
que envolvem a criação. Em suma, ele torna necessário o
que era mera probabilidade.
Descubro esses pensamentos ao rever um álbum de
obras de Van Gogh. Embora já as conhecesse de longa data,
descubro nelas, ainda sim, que a pintura dele é de fato diferente de tudo o que se pintava antes. Todo mundo hoje sabe
disso, claro, mas tive a impressão de que só então, ao rever
suas telas, percebia por quê.
E isso me levou a refletir sobre o que era a pintura, antes
dele, feita pelos impressionistas. Já falei aqui da diferença entre a pintura de ateliê – realizada dentro de casa – e a pintura
impressionista, feita ao ar livre.
Os pintores impressionistas descobriram a cor da paisagem sob a luz solar, a vibração da luz sobre a superfície das
coisas. E, ao descobri‐las, descobriram também que o colorido da paisagem muda com o passar das horas: descobriram
o tempo. É exemplo disso a série de quadros em que Monet
mostra a catedral de Rouen em momentos diferentes do dia.
A descoberta da realidade que muda a cada minuto
gerou uma pintura de pinceladas fluentes, que provocariam
em Cézanne uma reação contrária: ele queria que a nova
pintura se ajustasse a uma estrutura permanente, que ele
admirava nas obras dos museus.
Daí sua opção inovadora, que geraria o cubismo, nascido dessa visão que queria mudar o mundo em pintura, de tal
modo que as maçãs que ele pintou não pretendiam ser a cópia da maçã real: eram pintura.
Não sei que efeito teve essa nova visão da pintura sobre
Van Gogh. A verdade é que, no começo, ele quis fazer da pintura a cópia dramática do sofrimento humano, particularmente dos mineiros de Borinage. Van Gogh que vai fascinar
as pessoas e mudar a linguagem pictórica surge depois que
ele conhece a pintura dos impressionistas e especialmente do
impressionismo pontilhista.
Essa mudança da pintura de Van Gogh, que abandona as
cores soturnas para entregar‐se ao colorido vibrante dos quadros neoimpressionistas é surpreendente, mas, sem dúvida,
própria de uma personalidade que oscila entre atitudes e reações extremadas.
De qualquer modo, por mais surpreendente que seja essa
mudança em seu modo de pintar, ela corresponde a uma
necessidade indiscutível, legítima, tal a extraordinária força
expressiva que constatamos nesses quadros. A conclusão inevitável é que foi na pintura que a personalidade complexa e
angustiada de Van Gogh encontrou afinal o modo feliz de
inventar‐se. Pintando, ele era saudável.
Mas é necessário acentuar que, a partir da incursão do
pontilhismo, Van Gogh descobre seu próprio caminho, tornando-se criador de um universo pictórico que me fascina e
fascina a todos que dele tomam conhecimento. E, no meu caso
pelo menos, quanto mais o frequento, mais novo o descubro.
A verdade é que descobri o que eu já sabia, mas não sabia
tanto. É que, na sua pintura, os capinzais, os arbustos, os roseirais, os pinheiros, o céu estrelado, não são os que conhecemos:
são uma outra realidade por ele criada, feita de pastas de cor,
de pinceladas inesperadas que transformam a paisagem num
mundo gráfico‐pictórico, enfim, em algo que só existe ali, nas
telas por ele pintadas.
Não sei se consigo expressá‐lo: o que está em suas telas
não é a paisagem real. Como Cézanne, mas em outra linguagem, ele mudou o mundo em pintura e a pintura em fascinante delírio. A natureza é bela, mas a beleza de suas telas é
outra, é invenção humana.
(GULLAR, Ferreira. As cores do silêncio. Folha de São Paulo. Agosto de 2014.)
“Bem, chega de falar de política. Hoje vou falar de uma coisa
silenciosa chamada pintura.” (1º§) Considerando o primeiro
período do texto, é possível depreender que ele é marcado
por uma: