Leia o texto I para responder à questão.
Texto I
Uso de linguagem simples no meio jurídico pode cumprir função de democratizar a informação
Mutatis mutandis, data venia, quantum debeatur e outras expressões como essas poderiam facilmente ser nomes de
feitiços da saga Harry Potter, como o clássico Avada Kedavra, que fez sucesso nos anos 2000. No entanto, a origem dos termos
mencionados é bem menos empolgante. Derivadas do latim, essas palavras podem ser estranhas para a maioria da população,
mas são recorrentes no meio jurídico. Apesar da roupagem complicada, esses são termos que expressam conceitos simples.
Data venia, basicamente, significa “discordo”. Mutatis mutandis é sinônimo de “mudando o que tem que ser mudado”, termo
usado para indicar que uma lei ou medida deve ser adaptada para ser aplicada em uma determinada situação. Já a expressão
quantum debeatur é usada para dizer “quanto se deve”. Palavras rebuscadas, sentidos comuns.
O professor Daniel Pacheco, da Faculdade de Direito da USP em Ribeirão Preto, aponta que o modo de falar usado no
Direito é arcaico e se trata de uma herança ultrapassada que remonta aos tempos da Roma antiga. “No Brasil, o Direito vem da
tradição romana, então se adota aqui o chamado sistema romano-germânico. E lá na Roma antiga, 2 mil anos atrás, se tinham
fórmulas que deviam ser repetidas exatamente iguais aos modelos pelos advogados e juízes. Então, o advogado que ia participar
de alguma audiência deveria falar daquela exata forma que estava prescrita, qualquer coisa diferente daquilo seria um erro.
Trata-se de uma tradição muito engessada e isso se estendeu ao longo dos anos, virou cultura da área. Em um passado mais
recente, a pessoa que estudava Direito normalmente era aquela pessoa mais culta, que dominava a língua portuguesa muito
bem e gostava de mostrar essa erudição quando trabalhava. Então se criou essa ideia, que se tem até hoje, de que usar uma
linguagem inacessível, falar de forma complicada e complexa, é sinônimo de competência”, explica.
Para uma parcela dos profissionais da área, o uso desse tipo de linguagem afasta o público geral das discussões e decisões
tomadas no meio jurídico e o desintegra do restante da sociedade. O ministro Luís Roberto Barroso, presidente do Supremo
Tribunal Federal e do Conselho Nacional de Justiça, afirma que “quase tudo o que decidimos pode ser explicado em uma
linguagem simples, que as pessoas consigam entender, ainda que para discordar, mas para discordar daquilo que entenderam”.
Sendo assim, uma das maiores bandeiras de sua gestão é o Pacto Nacional pela Linguagem Simples no Judiciário, que já conta
com a adesão de mais de 70 tribunais e órgãos da Justiça brasileira.
O professor explica que a manutenção do uso desse vocabulário tradicional do Direito não faz sentido para os dias atuais
e não traz retornos positivos. “Esse é o tipo de coisa que as pessoas apenas continuam fazendo sem refletir por quê. Vamos
fazer um paralelo: advogado, jurista de modo geral, tradicionalmente sempre usou gravata, que é uma vestimenta que foi
criada na Rússia, um país muito frio, para deixar a pessoa mais aquecida. Não faz sentido nenhum a gente usar aqui no Brasil, que é um país tropical. Mas as pessoas usam, sem questionar muito. Porque sempre foi assim, sempre se usou e prevalece a
tradição”.
“O processo é nada mais do que uma relação de diálogo. Um diálogo das partes, dos advogados, do promotor de Justiça
com o juiz. Então, sendo um diálogo, qual é a coisa mais importante que existe nessa situação? É que a comunicação seja bem-
-feita. Então, não adianta nada escrever um texto cheio de mesóclise, com inversões, bem complicado, e que ninguém consiga
entender muito bem o que está sendo dito. Isso, inclusive, prejudica a própria relação processual. Porque se eu, como
advogado, escrevo uma petição, e o juiz não consegue entender direito o que eu escrevi, eu estou prejudicando o meu cliente.
É o contrário do que se pensava antigamente. Então, a gente não está fazendo um próprio algoritmo, a gente está prejudicando
o nosso cliente.
Daniel Pacheco entende que a linguagem simples pode cumprir uma função de democratização da informação.
“Frequentemente, eu sou convidado pela mídia para explicar decisões judiciais. Então, às vezes, o juiz dá uma decisão que não é
muito clara para quem não é da área jurídica, e as pessoas me pedem para explicar o que o juiz decidiu. Ele deu o que a pessoa
pediu ou não deu? Mandou prender ou não mandou prender? O que aconteceu? O que é esse caso? Então, ficam sempre muitas
dúvidas, e eu acho que você usar a linguagem simples tem esse outro efeito que é muito benéfico, que é democratizar o que foi
decidido pelo Judiciário. Tem que ser uma linguagem que qualquer pessoa que é alfabetizada, uma pessoa comum, consiga
entender. Não pode acontecer isso de alguém precisar pedir o auxílio de um advogado para explicar o que foi dito lá”, finaliza.
(RAMOS, Regis. Uso de linguagem simples no meio jurídico pode cumprir função de democratizar a informação. Jornal da USP, 2024. Disponível em:
<https://jornal.usp.br/radio-usp/uso-de-linguagem-simples-no-meio-juridico/ Acesso em: 20/10/2024. Adaptado.)