Ela nasceu lesma, vivia no meio de lesmas, mas não
estava satisfeita com sua condição. Não passamos de
criaturas desprezadas, queixava-se. Só somos conhecidas
por nossa lentidão. O rastro que deixaremos na história será
tão desprezível quanto a gosma que marca nossa passagem
pelos pavimentos.
A esta frustração correspondia um sonho: a lesma
queria ser como aquele parente distante, o escargot. O
simples nome já a deixava fascinada: um termo francês,
elegante, sofisticado, um termo que as pessoas
pronunciavam com respeito e até com admiração. Mas,
lembravam as outras lesmas, os escargots são comidos,
enquanto nós pelo menos temos chance de sobreviver. Este
argumento não convencia a insatisfeita lesma, ao contrário:
preferiria exatamente terminar sua vida desta maneira,
numa mesa de toalha adamascada, entre talheres de prata e
cálices de cristal. Assim como o mar é o único túmulo digno
de um almirante batavo, respondia, a travessa de porcelana
é a única lápide digna dos meus sonhos.
Assim pensando, resolveu sacrificar a vida por seu
ideal. Para isso, traçou um plano: tinha de dar um jeito de
acabar em uma cozinha refinada. O que não seria tão difícil.
Perto dali havia uma horta onde eram cultivadas alfaces:
belas e selecionadas alfaces, de folhas muito crespas. Alfaces
destinadas a gourmets, sem dúvida. Uma dessas alfaces,
raciocinou a lesma, me levará ao destino que almejo. Foi até
a horta, à doida velocidade de meio quilômetro por hora, e
ocultou-se no vegetal que, de fato, foi colhido naquele
mesmo dia e levado para ser consumido.
Infelizmente, porém, a alface não fazia parte de um
prato francês, mas sim de um popular e globalizado lanche.
Quando a consumidora foi comê-lo constatou, horrorizada, a
presença da lesma. Chamado, o gerente a princípio negou a
evidência: disse que aquilo era um vestígio de óleo
queimado. O que deixou a lesma indignada: eu não sou óleo
queimado, bradava, eu sou uma criatura, e uma criatura
com um sonho, respeitem meu sonho ou será que, para
vocês, nada mais é sagrado, só o direito do consumidor?
Ninguém a ouviu, claro. Foi ignominiosamente jogada
no lixo, junto com suas ilusões de grandeza. E assim
descobriu que, quem nasceu para lesma nunca chega a
escargot, mesmo viajando de carona em certas alfaces,
principalmente viajando de carona em certas alfaces.
(Fonte: SCLIAR, Moacyr. Folha de S. Paulo — adaptado.)