A violência em Roraima é contra a
imagem no espelho
Os venezuelanos encarnam o pesadelo real de que
toda estabilidade é provisória e o pertencimento é
sempre precário
Eliane Brum
Não se compreende a violência dos brasileiros
contra os venezuelanos sem entender o que é
estar na fronteira e se saber à beira do mapa,
a borda como o precipício que lembra a quem
se agarra ao lado de cá que há uma fera
rosnando no desconhecido. Com exceção dos
povos indígenas, a população não indígena de
Roraima é formada por migrantes recentes, a
maioria da segunda metade do século XX. E sempre chegando de um outro lugar em que o
chão se tornou movediço embaixo dos pés.
Muitos não desembarcaram em Roraima
diretamente do lugar em que nasceram, mas
antes tentaram pertencer a outros pontos do
mapa e não puderam se fixar por falta de
trabalho ou outras faltas. Quem alcança um
estado como Roraima vindo das regiões mais
pobres do Brasil — ou das porções mais
pobres dos estados rico s— sabe que alcançou
uma espécie de território limite. Dali pra
frente não há mais para onde andar. Talvez o
que um brasileiro de Roraima vislumbre num
venezuelano desesperado e sem lugar seja o
retrato de si mesmo. Uma velha foto bem
conhecida empurrada para o fundo de uma
gaveta da qual ninguém quer lembrar, mas
que nunca pôde ser totalmente esquecida.
Diante dos venezuelanos famintos, doentes e
assustados, desejando desesperadamente
entrar, a imagem se materializa como um
espelho que é preciso destruir. O que
destroem no corpo do outro é a imagem de si
mesmos cujo retorno não podem aceitar.
A angústia de não pertencer rugia dentro da
maioria das pessoas que entrevistei em
Roraima, em diferentes momentos. Mas isso
jamais era admitido. Ao contrário. Como
costuma acontecer neste tipo de fenômeno,
ela se expressava como uma identidade feroz,
a de ser o único cidadão legítimo, o único com
o direito de estar ali, o único que trabalha e
quer progredir. Isso se manifestava em três
comportamentos clássicos: a hostilidade
contra estrangeiros de outra língua,
especialmente americanos, a desconfiança
com relação a brasileiros não migrantes, o
desejo de apagar as populações nativas,
ainda que pela assimilação ou pela supressão
de direitos.
(...)
A identidade roraimense é fomentada na
população por velhas e novas elites locais a
partir da ideia de que o Brasil é contra eles
(ou os ignora ou só aparece para se meter
onde não devia, como na atual disputa pelo
fechamento da fronteira com a Venezuela), os
“gringos” querem tomar a Amazônia de seus
legítimos donos e os indígenas impedem o
progresso do estado e também de cada
indivíduo que ali chegou com o sonho de fazer
história, fortuna e, principalmente casa —
lugar de pertencimento para quem tanto
peregrinou pelo mapa do Brasil até finalmente
alcançar a sua borda. Essa é sempre a
condição de fronteira entre aqueles que as
disputam. (...) A fronteira é um espaço de
sobreviventes, que já conheceram o pior de
vários mundos, sofreram estigmas,
preconceitos e indignidades, e estão lutando
por um lugar e sabem muito bem o porquê.
(...)
A imagem dos venezuelanos entrando e
entrando, desesperados, miseráveis e
famintos, é a imagem que um migrante mais teme para si mesmo. É também a prova de
que a estabilidade é sempre provisória, de
que é possível perder tudo mais uma vez. É a
evidência viva, encarnada, de que não há
lugar seguro, de que o pertencimento é
sempre precário. De que do outro lado da
borda, o abismo espreita com olhos injetados
de sangue. Quem viveu escorregando de
todos os mapas sente a dor dessa experiência
no corpo.
Fonte: https://brasil.elpais.com/brasil/2018/08/27/opinion.html Acesso em 06/09/2018. Adaptação.