O duplo*
Sentado num dos primeiros bancos do ônibus número 15, Praça São Salvador - Rio Comprido, vejo surpreso, e
logo com crescente espanto, minha imagem refletida no retrovisor, com traje e movimentos que não são meus.
Para afastar a possibilidade de uma alucinação, faço, como prova, exaustivos gestos propositadamente
exagerados, que a imagem refletida não repete.
- Um sósia? Mas esse é semelhante, jamais idêntico.
Meu desassossego, meu espanto crescem.
O outro, com roupa e movimentos diferentes, permanece tranquilo, impassível, alheio à minha presença e parece
nem se importar em ser réplica.
- Ele não me terá visto? Impossível, estamos próximos. Ele talvez ocupe um assento à minha frente. Não sei.
A ideia do indivíduo de ser dois apavora.
Já agora preso de um terror incontrolável, soo a campainha do coletivo e desço precipitado, sem olhar para trás,
sem sequer ousar localizá-lo: falta-me coragem para ver o outro que vive fora de mim.
Porto Alegre, 4 de março de 1994
* Embora de 1994, o texto narra episódio vivido no Rio de Janeiro nos anos 40.
CAMARGO, Iberê. Gaveta dos guardados: Iberê Camargo. Organização e apresentação Augusto Massi. São Paulo: Cosac Naify, 2009. p. 33.