Durante a Primeira Guerra Mundial, os soldados diziam que amputar uma perna era morrer duas
vezes: a primeira durante a operação, a segunda de febre. De fato, infecções bacterianas do coto do membro
amputado eram tão frequentes que a cirurgia só era indicada em casos de gangrena, sangramento
incontrolável e outras situações extremas. A descoberta da caverna Liang Tebo, em Borneo, na Indonésia,
acaba de revelar que esse tipo de cirurgia já era realizado há muito mais tempo do que imaginávamos.
Liang Tebo é uma caverna com 160 m³, formada por três câmaras com pinturas pré-históricas nas
paredes da câmara superior, que datam de 41 mil anos atrás, no Pleistoceno tardio. Em 2020, escavações
no assoalho dessa caverna encontraram um cemitério a 1,5 metro de profundidade. Entre as ossadas,
chamou a atenção a de um adulto deitado de costas, com as pernas flexionadas, na qual faltava o pé
esquerdo. O esqueleto foi batizado de TB1.
Acompanhada com scanning a laser, a remoção cuidadosa dos ossos mostrou que 75% deles
estavam preservados, bem como todos os dentes. Os estudos das cartilagens de crescimento [...] permitiram
concluir que se tratava de um espécimen de Homo sapiens, com 19 a 20 anos de idade. [...]
Mas, o que mais chamou a atenção dos paleontólogos foram as evidências de que a amputação do
pé seccionou os ossos da perna – tíbia e fíbula – com incidência oblíqua, numa linha regular, como a das
incisões cirúrgicas. Por acidente, uma amputação com essas características só poderia ser provocada por
lâminas metálicas de uma máquina moderna. Esmagamento por acidente ou mordida de animal deixariam
fragmentos ósseos irregulares, jamais um corte oblíquo linear. [...]
A realização de uma cirurgia dessas proporções sugere que, no Pleistoceno tardio, milhares de anos
antes do advento da agricultura, numa população de caçadores-coletores que habitavam cavernas,
cirurgiões já tinham adquirido conhecimentos anatômicos sobre a disposição topográfica dos músculos,
ossos, artérias, veias e nervos dos membros inferiores, que lhes permitia executar uma intervenção que só
se tornaria rotina 30 mil anos mais tarde.
(drauziovarella.uol.com.br/drauzio/artigos/o-cirurgia o-mais-velho-do-mundo/).