Leia o texto “Carnes vivas”, de João Pereira Coutinho, e responda a questão.
Tive uma infância de príncipe. Passei longas horas na
rua, sem supervisão parental, a me aventurar. Isso na cidade.
No campo, o cardápio era melhor. Parti o braço (uma vez)
e o pulso (idem). Tudo porque teimava em subir nas árvores.
E, por falar em árvores, cheguei a construir uma casa rudimentar no cimo de uma oliveira que aguentou apenas duas
horas. Findas as duas horas, já eu estava no chão, com os
joelhos em carne viva.
Às vezes pergunto o que aconteceria aos meus pais se
o pequeno selvagem que fui reaparecesse agora. Provavelmente, seria exibido em uma jaula, como um King Kong pré-
-púbere.
“Minhas senhoras e meus senhores, vejam com os próprios olhos, uma criança que gosta de brincar!”
Imagino a plateia, horrorizada, tapando os olhos dos filhos – ou, melhor ainda, ligando os tablets e anestesiando-os
com a dose apropriada de pixels.
E a minha mãe certamente estaria presa. Exagero? Não
creio. Conta a “Economist” dessa semana que Debra Harrell,
da Carolina do Sul, foi detida por deixar a filha de nove anos
brincar no parque sem vigilância apurada.
Engraçado. Na década de 1950, uma criança tinha cinco
vezes mais possibilidades de morrer precocemente do que
uma criança do século 21. Mas os pais da “baby-boom generation” deixavam as suas crianças à solta, talvez por entenderem que uma criança é uma criança. Esses pais não eram,
como diz a revista, “pais-helicóptero”.
Expressão feliz. Conheço vários casais que devotam aos
filhos a mesma atenção obsessiva que um pesquisador dedica aos seus ratinhos de laboratório. Gostam de controlar tudo
sobre os filhos. Como os helicópteros, estão constantemente
a planar sobre a existência dos petizes.
E quando finalmente descem a terra, é a desgraça: correm com eles para aulas de música, caratê, natação, matemática. No regresso a casa, é ver esses pequenos escravos,
mortificados e exaustos, antes de se recolherem aos quartos.
Não sei que tipo de crianças os “pais-helicóptero” estão
a produzir. Deixo essas matérias para os especialistas. Digo
apenas que a profusão de “pais-helicóptero” é uma brutal amputação da infância e da adolescência. Para além de corromper a relação entre pais e filhos.
Sobre a amputação, não sei que adulto eu seria se nesses primeiros anos não houvesse a sensação de liberdade,
mas também a percepção do risco, que me acompanhava
todos os dias. Apesar dos ossos que quebrei, dores foram
compensadas pela confiança que ganhei e pela intuição de
que o mundo não é uma ameaça constante, povoado por sequestradores, pedófilos ou extraterrestres.
Mas os “pais-helicóptero” corrompem a relação essencial
entre eles e os filhos. Anos atrás, o filósofo Michael Sandel
escreveu um ensaio contra o uso da engenharia genética
para produzir descendências perfeitas. Dizia Sandel que se
os pais pudessem manipular os fetos para terem superfilhos,
estaria quebrada a qualidade essencial da parentalidade: o fato de amarmos os filhos incondicionalmente. Sejam ou não
perfeitos.
Igual raciocínio é aplicável aos “pais-helicóptero”: é natural desejar o melhor para os filhos. Porém não é natural ter
com os filhos a mesma relação que existe entre um treinador
e o seu atleta, como se a vida – acadêmica, pessoal, emocional – fosse uma mini-Olimpíada permanente.
Na minha infância, as únicas medalhas que colecionei
são as cicatrizes que trago no corpo. Não as troco por nada.
(Folha de S.Paulo, 29.07.2014. Adaptado)