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À nossa volta
Dois amigos meus desceram no aeroporto de Orly, em
Paris. Deixaram as malas no hotel e foram dar uma volta pelo
Quartier Latin. Decepcionaram-se com as ruas esburacadas,
pedras pelo chão, vidros quebrados, lixo acumulado — nunca
tinham visto Paris tão suja e desmazelada. E só foram entender o que estava acontecendo ao ler a manchete de um jornal
na banca. Os estudantes estavam em guerra contra o poder.
Era maio de 1968.
Outro amigo, músico e muito, muito alienado, pegou seu
carro bem cedo em Copacabana e tocou para a zona norte, onde estava gravando um LP. Lá chegando, encontrou o
estúdio fechado. Esperou duas horas, ninguém apareceu e
ele foi embora. Estranhou que as lojas do Centro também
estivessem fechadas e, ao passar pelo Flamengo, viu o prédio da UNE em chamas. E só ao chegar em casa soube que
estava em curso no país um golpe militar. Era 1º
de abril de
1964.
E, em 1956, mais um amigo, também músico, mas amador, passava férias em Diamantina (MG) quando soube que
dona Dadainha, senhora baiana muito respeitada na cidade,
estava hospedando um irmão que tocava violão dia e noite e
nunca saía à rua. O amigo foi procurá-lo. Tocou a campainha
e o próprio rapaz abriu a porta. Ao ouvir que o outro igualmente tocava violão, convidou-o a entrar e mostrou-lhe um samba
“diferente” que estava criando. Meu amigo gostou, despediu-
-se e não voltou a vê-lo. Dois anos depois, escutou no rádio
aquele “samba diferente” e reconheceu o violonista e cantor:
João Gilberto. O que ele ouvira em Diamantina era a bossa
nova, só que antes de ela existir.
É famosa a passagem de “A Cartuxa de Parma”, de
Stendhal, em que o herói se junta a um exército sem saber
que está no meio da guerra de Waterloo.
É o risco que corremos por não ficarmos de olho à nossa
volta.
(Ruy Castro. www.folha.uol.com.br, 25.11.2017)