Paisagem com figuras
Em meados dos anos 60, o poeta João Cabral de Mello
Neto jantava na cantina Fiorentina, no Leme, com seus colegas Fernando Pessoa Ferreira e Felix de Athayde, pernambucanos como ele. Em certo momento, ouviu-se um rumor na
varanda e João Cabral perguntou o que estava acontecendo.
“É o Chacrinha, que acabou de chegar”, informou Fernando.
“Chacrinha? Quem é Chacrinha?”, quis saber João
Cabral. “É um apresentador de tevê, muito famoso”, disseram. Cônsul do Brasil em Barcelona, com raras vindas ao
Rio e famoso por não se interessar por música e tomar dez
aspirinas por dia para a dor de cabeça, o poeta estava por
fora do que acontecia por aqui.
E, mesmo que estivesse a par, não podia haver ninguém
menos Chacrinha do que João Cabral. Na sua poesia grave e
desidratada, altamente cerebral, as palavras eram de pedra;
os cães, sem plumas; e as facas, só lâminas. Já Chacrinha, o
divino palhaço, era o barroco em Technicolor, embora a tevê
ainda fosse em preto e branco. Em seu programa, apresentava os piores cantores do Brasil, atirava bacalhau para a
plateia e promovia concursos de comer barata. Os comunicólogos ainda não o tinham descoberto como símbolo do “mau
gosto genial”.
Chacrinha entrou ventando pela Fiorentina, cercado de
dez ou quinze aspones. Ao passar pela mesa de João Cabral,
estacou e olhou-o fixamente. Então, abriu os braços e exclamou: “Cabral!!!”. O poeta levou um susto, mas não deixou a
bola cair: “Abelardo!!!”, respondeu. Levantou-se no ato e os
dois se jogaram nos braços um do outro, aos soluços.
O poeta João Cabral de Mello Neto e o apresentador
Abelardo “Chacrinha” Barbosa, colegas de curso primário no
Colégio Marista, do Recife, e que não se viam havia mais de
30 anos, tinham acabado de se reencontrar, reconhecer e
abraçar. É o Brasil.
(Ruy Castro. A arte de querer bem. Rio de Janeiro, Estação Brasil, 2018)