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Vida ao natural
Pois no Rio tinha um lugar com uma lareira. E quando
ela percebeu que, além do frio, chovia nas árvores, não pôde
acreditar que tanto lhe fosse dado. O acordo do mundo com
aquilo que ela nem sequer sabia que precisava como numa
fome. Chovia, chovia. O fogo aceso pisca para ela e para o
homem. Ele, o homem, se ocupa do que ela nem sequer lhe
agradece; ele atiça o fogo na lareira, o que não lhe é senão
dever de nascimento. E ela – que é sempre inquieta, fazedora de coisas e experimentadora de curiosidades – pois ela
nem lembra sequer de atiçar o fogo; não é seu papel, pois
se tem o seu homem para isso. Não sendo donzela, que o
homem então cumpra a sua missão. O mais que ela faz é às
vezes instigá-lo: “aquela acha*”, diz-lhe, “aquela ainda não
pegou”. E ele, um instante antes que ela acabe a frase que o
esclareceria, ele por ele mesmo já notara a acha, homem seu
que é, e já está atiçando a acha. Não a comando seu, que é a
mulher de um homem e que perderia seu estado se lhe desse
ordem. A outra mão dele, a livre, está ao alcance dela. Ela
sabe, e não a toma. Quer a mão dele, sabe que quer, e não a
toma. Tem exatamente o que precisa: pode ter.
Ah, e dizer que isto vai acabar, que por si mesmo não
pode durar. Não, ela não está se referindo ao fogo, refere-se
ao que sente. O que sente nunca dura, o que sente sempre
acaba, e pode nunca mais voltar. Encarniça-se então sobre o
momento, come-lhe o fogo, e o fogo doce arde, arde, flameja.
Então, ela que sabe que tudo vai acabar, pega a mão livre
do homem, e ao prendê-la nas suas, ela doce arde, arde,
flameja.
(Clarice Lispector, Os melhores contos
[seleção Walnice Nogueira Galvão], 1996)
* pequeno pedaço de madeira usado para lenha