Leia o texto para responder a questão.
Deus, ou alguém por Ele, me poupou de uns tantos
pesadelos. É nisso que penso enquanto o camarada à minha
frente, com incontida excitação, vai fazendo o pormenorizado
relato de sua batalha para alugar apartamento. Já esteve em
duas dúzias de endereços, contabiliza, e em outros tantos
pretende estar, pois em cada um achou defeito. Longe de
se lamentar, está feliz. À beira da euforia, parece governado
pela convicção de que o bom não é achar, é procurar. Prazer
que exige dele ver imperfeição onde não tem.
Respeitemos o time dos que procuram na esperança de
não encontrar – de certa forma aparentados com aqueles
que inventam pretexto para estar o tempo todo reformando a
casa. São, uns e outros, meus antípodas1
. A simples ideia de
empreender uma reforma me levaria a buscar um novo pouso – se também essa perspectiva não me trouxesse pânico.
Problema da minha exclusiva terapia, eu sei. E, a esta
altura da vida, já não há divã que dê jeito na fobia imobiliária de quem jamais se lançou numa peregrinação em busca
de poleiro.
No entanto, ciente das minhas dificuldades nesse particular, houve um dia, meio século atrás, em que, com poucos
meses de São Paulo, e pendurado ainda na generosidade do
casal que me acolheu de mala e cuia, achei que era hora de
providenciar cafofo próprio.
Caiu do céu uma proposta para dividir apartamento com
um colega. É bem verdade que o edifício ainda não estava concluído e talvez fôssemos ali, o Sérgio e eu, os únicos
moradores, pois não me lembro de vizinhos. Se mais gente
veio, foi para o mesmo apartamento, de apenas um quarto e
sala microscópica, mas onde, em dado momento, se espremeram quatro rapazes, todos do ramo jornalístico. E nem a
nossa juventude explicaria a indiferença coletiva ante o fato
de não haver ali uma geladeira, por miúda que fosse, para
tantos bebedores de cerveja. Fogão havia, mas ocioso, pois
nenhum de nós fritava um ovo.
Teria ficado indefinidamente em tal moquiço2
, se um dos
comparsas, exasperado, não me houvesse proposto alugar
coisa menos deprimente. ________ mais dois apartamentos,
ambos excelentes, que também não foi preciso garimpar.
O mesmo se diga de um terceiro, o atual, no qual estou ______ quase 28 anos e do qual não pretendo arredar pé – a
não ser que o referido pé já não ______ conta dos 24 degraus
que me trazem a este primeiro andar.
(Humberto Werneck. Fobia imobiliária.
www.estadao.com.br, 02.10.2020. Adaptado)
1 antípoda: aquele tem característica oposta.
2 moquiço: habitação rústica, desprovida de conforto.