No terceiro parágrafo do texto, o uso dos numerais
É, suponho que é em mim, como um dos representantes de nós, que devo procurar por que está doendo a morte de um facínora. E por que é que mais me adianta contar os treze tiros que mataram Mineirinho do que os seus crimes. Perguntei a minha cozinheira o que pensava sobre o assunto. Vi no seu rosto a pequena convulsão de um conflito, o mal-estar de não entender o que se sente, o de precisar trair sensações contraditórias por não saber como harmonizá-las. Fatos irredutíveis, mas revolta irredutível também, a violenta compaixão da revolta. Sentir-se dividido na própria perplexidade diante de não poder esquecer que Mineirinho era perigoso e já matara demais; e no entanto nós o queríamos vivo. A cozinheira se fechou um pouco, vendo-me talvez como a justiça que se vinga. Com alguma raiva de mim, que estava mexendo na sua alma, respondeu fria: “O que eu sinto não serve para se dizer. Quem não sabe que Mineirinho era criminoso? Mas tenho certeza de que ele se salvou e já entrou no Céu”. Respondi-lhe que “mais do que muita gente que não matou”.
Por quê? No entanto a primeira lei, a que protege corpo e vida insubstituíveis, é a de que não matarás. Ela é a minha maior garantia: assim não me matam, porque eu não quero morrer, e assim não me deixam matar, porque ter matado será a escuridão para mim.
Esta é a lei. Mas há alguma coisa que, se me fez ouvir o primeiro e o segundo tiro com um alívio de segurança, no terceiro me deixa alerta, no quarto desassossegada, o quinto e o sexto me cobrem de vergonha, o sétimo e o oitavo eu ouço com o coração batendo de horror, no nono e no décimo minha boca está trêmula, no décimo primeiro digo em espanto o nome de Deus, no décimo segundo chamo meu irmão. O décimo terceiro tiro me assassina – porque eu sou o outro. Porque eu quero ser o outro.
Essa justiça que vela meu sono, eu a repudio, humilhada por precisar dela. Enquanto isso durmo e falsamente me salvo. Nós, os sonsos essenciais.
Até que treze tiros nos acordem, e com horror digo tarde demais – vinte e oito anos depois que Mineirinho nasceu – que ao homem acuado, que a esse não nos matem. Porque sei que ele é o meu erro. E de uma vida inteira, por Deus, o que se salva às vezes é apenas o erro, e eu sei que não nos salvaremos enquanto nosso erro não nos for precioso. Meu erro é o meu espelho, onde vejo o que em silêncio eu fiz de um homem. Meu erro é o modo como vi a vida se abrir na sua carne e me espantei, e vi a matéria de vida, placenta e sangue, a lama viva.
Em Mineirinho se rebentou o meu modo de viver. Como não amá-lo, se ele viveu até o décimo terceiro tiro o que eu dormia? Sua assustada violência. Sua violência inocente – não nas consequências, mas em si inocente como a de um filho de quem o pai não tomou conta.
(Clarice Lispector, Para não esquecer. Adaptado)
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Gabarito comentado
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A alternativa correta é a alternativa C.
A questão aborda a análise do uso dos numerais no terceiro parágrafo do texto de Clarice Lispector. Para resolvê-la, é necessário compreender como a autora utiliza os numerais para criar uma sequência de sensações que evoluem de forma crescente.
Vamos entender melhor a alternativa C:
C - Cria estrategicamente uma sequência, formando uma gradação, que vai da sensação de justiça feita à sensação de morrer junto com o outro.
No texto, Clarice Lispector usa os numerais para descrever em detalhes as sensações da narradora a cada tiro que Mineirinho recebe. Começa com um sentimento de alívio no primeiro e segundo tiros, passando pelo desassossego nos tiros subsequentes, e culmina no décimo terceiro tiro, onde a narradora se sente completamente conectada e quase "morta" junto com Mineirinho. Essa progressão cria uma gradação de emoções, o que valida a alternativa C.
Agora, vamos analisar as alternativas incorretas:
A - Organiza uma enumeração de sensações, culminando com o alívio pela morte de Mineirinho, provavelmente por ser um homem mau.
Essa alternativa está incorreta porque a enumeração de sensações não culmina com alívio, mas sim com uma sensação de morte compartilhada e identificação com Mineirinho. A narradora não se sente aliviada, mas sim perturbada e conectada ao facínora.
B - Minimiza uma relação de paradoxo, explorando o desejo de se ver Mineirinho morto e a perplexidade com a sua morte.
Embora o parágrafo explore sentimentos contraditórios, ele não minimiza essa relação, mas sim a intensifica. A sequência numérica destaca o aumento da complexidade emocional da narradora, não a minimização do paradoxo.
D - Relaciona cada um dos tiros a um sentimento em relação a Mineirinho, mostrando que o narrador acaba por ver que a morte do facínora era mesmo necessária.
Esta alternativa sugere que a narradora conclui que a morte de Mineirinho era necessária, mas o texto mostra que ela se sente cada vez mais desconfortável e horrorizada com a sequência de tiros, culminando em uma sensação de morte compartilhada, não de necessidade.
E - Indica que cada um dos tiros, mais do que sentido por Mineirinho, era sentido pelo narrador, já que o assassinado era parente de sua cozinheira.
Essa alternativa está incorreta porque a relação pessoal entre a narradora e Mineirinho não é explicitamente mencionada no texto. A intensidade das sensações descritas está mais relacionada ao processo de humanização e identificação com Mineirinho do que a uma relação de parentesco.
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Comentários
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[GABARITO: LETRA C]
Diante da leitura é possível perceber a presença de uma gradação dos fatos.
Cria estrategicamente uma sequência, formando uma gradação, que vai da sensação de justiça feita à sensação de morrer junto com o outro.
Esta é a lei. Mas há alguma coisa que, se me fez ouvir o primeiro e o segundo tiro com um alívio de segurança, no terceiro me deixa alerta, no quarto desassossegada, o quinto e o sexto me cobrem de vergonha, o sétimo e o oitavo eu ouço com o coração batendo de horror, no nono e no décimo minha boca está trêmula, no décimo primeiro digo em espanto o nome de Deus, no décimo segundo chamo meu irmão. O décimo terceiro tiro me assassina – porque eu sou o outro. Porque eu quero ser o outro.
Clarice eu te amo!
Usa os Numerais Odenais = Ordem, estratégica mente uma ordem, como fala na alternativa C
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