Na passagem “Nisso está o espinho do homem: ele muda, os ou...
O outro marido
Era conferente da Alfândega — mas isso não tem importância. Somos todos alguma coisa fora de nós; o eu irredutível nada tem a ver com as classificações profissionais. Pouco importa que nos avaliem pela casca. Por dentro, sentia-se diferente, capaz de mudar sempre, enquanto a situação exterior e familiar não mudava. Nisso está o espinho do homem: ele muda, os outros não percebem.
Sua mulher não tinha percebido. Era a mesma de há 23 anos, quando se casaram (quanto ao íntimo, é claro). Por falta de filhos, os dois viveram demasiado perto um do outro, sem derivativo. Tão perto que se desconheciam mutuamente, como um objeto desconhece outro, na mesma prateleira de armário. Santos doía-se de ser um objeto aos olhos de d. Laurinha. Se ela também era um objeto aos olhos dele? Sim, mas com a diferença de que d. Laurinha não procurava fugir a essa simplificação, nem reparava; era de fato objeto. Ele, Santos, sentia-se vivo e desagradado.
Ao aparecerem nele as primeiras dores, d. Laurinha penalizou-se, mas esse interesse não beneficiou as relações do casal. Santos parecia comprazer-se em estar doente. Não propriamente em queixar-se, mas em alegar que ia mal. A doença era para ele ocupação, emprego suplementar. O médico da Alfândega dissera-lhe que certas formas reumáticas levam anos para ser dominadas, exigem adaptação e disciplina. Santos começou a cuidar do corpo como de uma planta delicada. E mostrou a d. Laurinha a nevoenta radiografia da coluna vertebral, com certo orgulho de estar assim tão afetado.
– Quando você ficar bom…
– Não vou ficar. Tenho doença para o resto da vida.
Para d. Laurinha, a melhor maneira de curar-se é tomar remédio e entregar o caso à alma do padre Eustáquio, que vela por nós. Começou a fatigar-se com a importância que o reumatismo assumira na vida do marido. E não se amolou muito quando ele anunciou que ia internar-se no Hospital Gaffrée Guinle.
– Você não sentirá falta de nada, assegurou-lhe Santos. Tirei licença com ordenado integral. Eu mesmo virei aqui todo começo de mês trazer o dinheiro.
(...) Pontualmente, Santos trazia-lhe o dinheiro da despesa, ficaram até um pouco amigos nessa breve conversa a longos intervalos. Ele chegava e saía curvado, sob a garra do reumatismo, que nem melhorava nem matava. A visita não era de todo desagradável, desde que a doença deixara de ser assunto. Ela notou como a vida de hospital pode ser distraída: os internados sabem de tudo cá de fora.
– Pelo rádio — explicou Santos. (...)
Santos veio um ano, dois, cinco. Certo dia não veio. D. Laurinha preocupou-se. Não só lhe faziam falta os cruzeiros; ele também fazia. Tomou o ônibus, foi ao hospital pela primeira vez, em alvoroço.
Lá ele não era conhecido. Na Alfândega informaram-lhe que Santos falecera havia quinze dias, a senhora quer o endereço da viúva?
– Sou eu a viúva — disse d. Laurinha, espantada.
O informante olhou-a com incredulidade. Conhecia muito bem a viúva do Santos, d. Crisália, fizera bons piqueniques com o casal na ilha do Governador. Santos fora seu parceiro de bilhar e de pescaria. Grande praça. Ele era padrinho do filho mais velho de Santos. Deixara três órfãos, coitado.
E tirou da carteira uma foto, um grupo de praia. Lá estavam Santos, muito lépido, sorrindo, a outra mulher, os três garotos. Não havia dúvida: era ele mesmo, seu marido. Contudo, a outra realidade de Santos era tão destacada da sua, que o tornava outro homem, completamente desconhecido, irreconhecível.
– Desculpe, foi engano. A pessoa a que me
refiro não é essa — disse d. Laurinha,
despedindo-se.
ANDRADE, Carlos Drummond. Disponível
em: https://contobrasileiro.com.br/o-outromarido-cronica-de-carlos-drummond-deandrade/ (Adaptado)
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Gabarito comentado
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A passagem em questão é: "Nisso está o espinho do homem: ele muda, os outros não percebem."
A) Correta.
Essa passagem apresenta uma reflexão sobre o comportamento humano. O autor afirma que o problema ou dificuldade do ser humano reside no fato de que ele muda, ou seja, evolui, se desenvolve ou passa por transformações internas e externas. Entretanto, apesar dessas mudanças ocorrerem, os outros ao seu redor não percebem essas transformações.
A conjunção "Mas" tem a função de estabelecer uma relação de oposição ou contraste entre as duas ideias apresentadas. O autor está enfatizando que, embora o homem mude, esse processo não é percebido pelos outros. Ou seja, há uma diferença entre a realidade interna do indivíduo e a percepção que os outros têm dele.
Incluindo a conjunção "Mas" na frase, temos: "Nisso está o espinho do homem: ele muda, mas os outros não percebem."
Essa inclusão da conjunção "Mas" torna a frase mais clara ao indicar que há uma oposição entre a mudança do homem e a falta de percepção dos outros. A conjunção também ajuda a destacar o conflito ou a dificuldade na comunicação e na compreensão mútua entre as pessoas.
É importante observar que as outras alternativas não seriam adequadas nesse contexto:
E) Incorreta.
"Porque" introduz uma explicação ou causa, mas na frase original não há uma relação de causa e efeito entre as duas ideias apresentadas.
C) Incorreta.
"Logo" indica uma conclusão, o que não se encaixa na relação entre as duas ideias do texto.
D) Incorreta.
"Porquanto" é uma conjunção que tem um sentido explicativo.
E) Incorreta.
"Sem que" introduz uma ideia de condição, que também não está presente na passagem original.
Gabarito: A
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Comentários
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Está dando ideia de conjunção adversativa(CONTRASTE, OPOSIÇÃO).
ele muda, MAS, PORÉM, TODAVIA, CONTUDO, NO ENTANTO, ENTRETANTO, os outros não percebem.
GABA: A
Mas é uma conjunção adversativa, que introduz o segmento que denota uma oposição ou restrição ao que foi dito no segmento anterior. Tem sentido semelhante a contudo, entretanto, todavia, apesar disso, não obstante.
“Nisso está o espinho do homem: ele muda, (MAS) os outros não percebem.”
pertencelemos!
QUESTAO ESTRNHA
??
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