Releia o primeiro parágrafo do texto e analise especialment...
É, suponho que é em mim, como um dos representantes de nós, que devo procurar por que está doendo a morte de um facínora. E por que é que mais me adianta contar os treze tiros que mataram Mineirinho do que os seus crimes. Perguntei a minha cozinheira o que pensava sobre o assunto. Vi no seu rosto a pequena convulsão de um conflito, o mal-estar de não entender o que se sente, o de precisar trair sensações contraditórias por não saber como harmonizá-las. Fatos irredutíveis, mas revolta irredutível também, a violenta compaixão da revolta. Sentir-se dividido na própria perplexidade diante de não poder esquecer que Mineirinho era perigoso e já matara demais; e no entanto nós o queríamos vivo. [...]
Mas há alguma coisa que, se me faz ouvir o primeiro e o segundo tiro com um alívio de segurança, no terceiro me deixa alerta, no quarto desassossegada, o quinto e o sexto me cobrem de vergonha, o sétimo e o oitavo eu ouço com o coração batendo de horror, no nono e no décimo minha boca está trêmula, no décimo primeiro digo em espanto o nome de Deus, no décimo segundo chamo meu irmão. O décimo terceiro tiro me assassina — porque eu sou o outro. Porque eu quero ser o outro.
Essa justiça que vela meu sono, eu a repudio, humilhada por precisar dela. Enquanto isso durmo e falsamente me salvo. Nós, os sonsos essenciais. Para que minha casa funcione, exijo de mim como primeiro dever que eu seja sonsa, que eu não exerça a minha revolta e o meu amor, guardados. Se eu não for sonsa, minha casa estremece. [...]
Em Mineirinho se rebentou o meu modo de viver. [...] Sua assustada violência. Sua violência inocente — não nas consequências, mas em si inocente como a de um filho de quem o pai não tomou conta. Tudo o que nele foi violência é em nós furtivo, e um evita o olhar do outro para não corrermos o risco de nos entendermos. Para que a casa não estremeça. A violência rebentada em Mineirinho que só outra mão de homem, a mão da esperança, pousando sobre sua cabeça aturdida e doente, poderia aplacar e fazer com que seus olhos surpreendidos se erguessem e enfim se enchessem de lágrimas. [...]
A justiça prévia, essa não me envergonharia. Já era tempo de, com ironia ou não, sermos mais divinos; se adivinhamos o que seria a bondade de Deus é porque adivinhamos em nós a bondade, aquela que vê o homem antes de ele ser um doente do crime. Continuo, porém, esperando que Deus seja o pai, quando sei que um homem pode ser o pai de outro homem. E continuo a morar na casa fraca. Essa casa, cuja porta protetora eu tranco tão bem, essa casa não resistirá à primeira ventania que fará voar pelos ares uma porta trancada. [...] o que me sustenta é saber que sempre fabricarei um deus à imagem do que eu precisar para dormir tranquila e que outros furtivamente fingirão que estamos todos certos e que nada há a fazer. [...] Feito doidos, nós o conhecemos, a esse homem morto onde a grama de radium se incendiara. Mas só feito doidos, e não como sonsos, o conhecemos. [...]
Até que viesse uma justiça um pouco mais doida. Uma que levasse em conta que todos temos que falar por um homem que se desesperou porque neste a fala humana já falhou, ele já é tão mudo que só o bruto grito desarticulado serve de sinalização. Uma justiça prévia que se lembrasse de que nossa grande luta é a do medo, e que um homem que mata muito é porque teve muito medo. Sobretudo uma justiça que se olhasse a si própria, e que visse que nós todos, lama viva, somos escuros, e por isso nem mesmo a maldade de um homem pode ser entregue à maldade de outro homem: para que este não possa cometer livre e aprovadamente um crime de fuzilamento.
Uma justiça que não se esqueça de que nós todos somos perigosos, e que na hora em que o justiceiro mata, ele não está mais nos protegendo nem querendo eliminar um criminoso, ele está cometendo o seu crime particular, um longamente guardado. [...]
Clarice Lispector (Disponível em ip.usp.br. Adaptado.)
Comentários
Veja os comentários dos nossos alunos
a) ''Perguntei a minha cozinheira o que pensava sobre o assunto''.
VTDI OI OD -----> (pergunta algo a alguém)
b) ''o que''
o -> pronome demostrativo / que -> pronome relativo
c) Perguntei ----> Pretério Perfeito do Indicativo
Pensava -----> Pretérito Imperfeito do Indicativo
d) dois verbos --> duas orações
e) ''Perguntei a minha cozinheira o que pensava sobre o assunto''.
VTDI OI OD -----> (pergunta algo a alguém)
Fazendo apenas uma correção no comentário da nossa colega Sil.
B) Na frase, a palavra "que" classifica-se, morfologicamente, como conjunção integrante e, portanto, não tem função sintática.
Erro do item está na colocação de que a conjução não tem função sintática, pois toda conjunção poderá ter a função sintática de:
sujeito;ou
objeto direto ou indireto;ou
predicativo;ou
complemento nominal;ou
aposto.
Podemos claramente trocar a conjução "que" pela conjunção "isso".
Perguntei isso a minha cozinheira ( na ordem direta).
Fazendo apenas uma pequena correção ao nosso colega W Borges:
O "que" na altertiva B creio que seja, de fato, um pronome relativo. A substituição que você fez foi incorreta, pois o "que" é só uma parte do objeto direto, como destacou a colega que você corrigiu.
Eu indiquei para comentário porque não estou certo quanto à função sintática do termo em questão. De qualquer forma, não vejo motivo pra crer que o termo seja conjunção integrante.
Pessoal,vamos ter cuidado com os comentários ! Conjunção NÃO EXERCE FUNÇÃO SINTÁTICA!
Se não tivesse esse "o" na frente, acho que seria conj integrante, mas esse "o" forma com o "que" o termo "o que" = aquilo que. Se equivale a um pronome demonstrativo. Algumas gramáticas vêm falando que o pronome demonstrativo pode vir também como "o/a que" é já vi em alguns comentários de professores tbm.
Minha cozinheira (que) pensava isso(o) sobre o assunto.
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