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Ano: 2018
Banca:
CONSULPAM
Órgão:
Câmara de Juiz de Fora - MG
Prova:
CONSULPAM - 2018 - Câmara de Juiz de Fora - MG - Assistente Técnico Legislativo – Analista na Área de Saúde Pública |
Q2007136
Português
Texto associado
Aldrovando Cantagalo veio ao mundo em virtude dum erro de gramática. Durante sessenta anos de vida terrena pererecou como um peru em cima da gramática. E morreu, afinal, vítima dum novo erro de gramática. Mártir da gramática, fique este documento da sua vida como pedra angular para uma futura e bem merecida canonização.
Leia o texto e responda a questão.
Aldrovando Cantagalo veio ao mundo em virtude dum erro de gramática. Durante sessenta anos de vida terrena pererecou como um peru em cima da gramática. E morreu, afinal, vítima dum novo erro de gramática. Mártir da gramática, fique este documento da sua vida como pedra angular para uma futura e bem merecida canonização.
Havia em Itaoca um pobre moço que
definhava de tédio no fundo de um cartório.
Escrevente. Vinte e três anos. Magro. Ar um tanto
palerma. Ledor de versos lacrimogêneos e pai duns
acrósticos dados à luz no “Itaoquense”, com bastante
sucesso.
Vivia em paz com as suas certidões quando o
frechou venenosa seta de Cupido. Objeto amado: a
filha mais moça do coronel Triburtino, o qual tinha
duas, essa Laurinha, do escrevente, então nos
dezessete, e a do Carmo, encalhe da família, vesga,
madurota, histérica, manca da perna esquerda e um
tanto aluada.
Triburtino não era homem de brincadeira.
Esguelara um vereador oposicionista em plena sessão
da câmara e desd’aí se transformou no tutu da terra.
Toda gente lhe tinha um vago medo; mas o amor, que
é mais forte que a morte, não receia sobrecenhos
enfarruscados nem tufos de cabelos no nariz.
Ousou o escrevente namorar-lhe a filha,
apesar da distância hierárquica que os separava.
Namoro à moda velha, já se vê, pois que nesse tempo
não existia a gostosura dos cinemas. Encontros na
igreja, à missa, troca de olhares, diálogos de flores –
o que havia de inocente e puro. Depois, roupa nova,
ponta de lenço de seda a entremostrar-se no bolsinho
de cima e medição de passos na rua d’Ela, nos dias de
folga. Depois, a serenata fatal à esquina, com o
Acorda, donzela...
Sapecado a medo num velho pinho de
empréstimo. Depois, bilhetinho perfumado.
Aqui se estrepou...
Escrevera nesse bilhetinho, entretanto, apenas
quatro palavras, afora pontos exclamativos e
reticências:
Anjo adorado!
Amo-lhe!
Para abrir o jogo bastava esse movimento de
peão. Ora, aconteceu que o pai do anjo apanhou o
bilhetinho celestial e, depois de três dias de
sobrecenho carregado, mandou chamá-lo à sua
presença, com disfarce de pretexto – para umas
certidõesinhas, explicou.
Apesar disso, o moço veio um tanto
ressabiado, com a pulga atrás da orelha. Não lhe
erravam os pressentimentos. Mas o pilhou portas
aquém, o coronel trancou o escritório, fechou a
carranca e disse:
- A família Triburtino de Mendonça é a mais
honrada desta terra, e eu, seu chefe natural, não
permitirei nunca – nunca, ouviu? – que contra ela se
cometa o menor deslize.
Parou. Abriu uma gaveta. Tirou de dentro o
bilhetinho cor-de-rosa, desdobrou-o.
- É sua esta peça de flagrante delito?
O escrevente, a tremer, balbuciou medrosa
confirmação.
- Muito bem! Continuou o coronel em tom
mais sereno. Ama, então, minha filha e tem a audácia
de o declarar... Pois agora…
O escrevente, por instinto, ergueu o braço
para defender a cabeça e relanceou os olhos para a
rua, sondando uma retirada estratégica.
- ... é casar! Concluiu de improviso o
vingativo pai.
O escrevente ressuscitou. Abriu os olhos e a
boca, num pasmo. Depois, tornando a si, comoveu-se
e, com lágrimas nos olhos disse, gaguejante:
- Beijo-lhe as mãos, coronel! Nunca imaginei
tanta generosidade em peito humano! Agora vejo com
que injustiça o julgam aí fora!…
Velhacamente o velho cortou-lhe o fio das
expansões.
- Nada de frases, moço, vamos ao que serve:
declaro-o solenemente noivo de minha filha!
E voltando-se para dentro, gritou:
- Do Carmo! Venha abraçar o teu noivo!
O escrevente piscou seis vezes e, enchendo-se
de coragem, corrigiu o erro.
- Laurinha, quer o coronel dizer…
O velho fechou de novo a carranca.
- Sei onde trago o nariz, moço. Vassuncê
mandou este bilhete à Laurinha dizendo que ama-
“lhe”. Se amasse a ela deveria dizer amo-“te”.
Dizendo “amo-lhe” declara que ama a uma terceira
pessoa, a qual não pode ser senão a Maria do Carmo.
Salvo se declara amor à minha mulher (…).
(LOBATO, Monteiro. O Colocador de
Pronomes. In: PINTO, Edith Pimentel (org.). O Português
do Brasil: textos críticos e teóricos II - 1920-1945 – Fontes
para a teoria e a história. São Paulo: Edusp, [1924] 1981,
p. 51-79.)
Marque a alternativa que descreve o emprego do
termo destacado em “Aqui se estrepou.”