Pelo contexto, no trecho "atroa na noite da memória", a pal...
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Ano: 2024
Banca:
FURB
Órgão:
Prefeitura de Timbó - SC
Prova:
FURB - 2024 - Prefeitura de Timbó - SC - Técnico em Segurança do Trabalho |
Q3168752
Não definido
Texto associado
O texto seguinte servirá de base para responder à questão.
Itamar Vieira Junior e Doramar : sobre uma épica dos
excluídos
Wander Melo Miranda
A primeira impressão que se tem de Doramar ou a
odisseia , de Itamar Vieira Junior, não é apenas o título
inusitado e instigante, mas a de que todas as
personagens, geralmente mulheres, "respiram terra,
cheiram terra, são terra". A força telúrica do livro vem,
pois, da simbiose perfeita entre elementos da natureza e
do feminino, ligados a uma ancestralidade que o autor
faz questão de afirmar na dedicatória do livro às
"mulheres, maternas, ancestrais" e na epígrafe tomada
de empréstimo ao poeta sírio Adonis, com a qual se
identifica: "Nasci numa aldeia/ pequena, reclusa como o
útero/ e ainda não saí dela".
Não se espere, por isso, uma guinada regionalista da
narrativa à maneira do romance brasileiro de 1930,
mesmo porque pouquíssimas vezes há localizações
geográficas precisas — quase sempre feitas apenas uma
só vez: Brasil, Salvador, Dakar — e nenhum apelo a
vocabulário e sintaxe locais ou regionais. A aposta de
Vieira Junior é outra, refinada e inovadora no contexto
atual, em que o tema urbano predomina. Vale-se do
problema fundiário e da questão escravocrata, que nos
assolam desde que o colonizador aqui chegou, para
traçar o amplo arco de desolação que acompanha
historicamente os deserdados da terra, em geral
afrodescendentes e indígenas, fazendo ressoar uma voz
que "atroa na noite da memória".
Walter Benjamim opõe a História contínua do vencedor
(branco, acrescente-se) à tradição descontínua do
vencido em busca da sua própria história. Vieira Junior a
transforma na narrativa meio épica, meio lírica das
vicissitudes de personagens rumo à liberdade perdida na
travessia do mar que traz "os nossos para morrer de
maus tratos e trabalho", como diz o "nós" que narra Farol
das almas e outras histórias e faz delas expressão de
uma comunidade de destino. Ou então pode ser a voz
solitária de Alma, no texto homônimo, escravizada que
mata os senhores de engenho falidos, foge e se livra de
vez da violência extrema sofrida, não sem antes
enfrentar obstáculos sem fim, os quais supera com força
e persistência incomuns, instigada pelo desejo do
"acalanto de um lugar onde exista a liberdade".
Por sua vez, Doramar, ao sair para a rua, se depara com
um "cão moribundo encolhido de morte" e se vê lançada
— numa identificação inconsciente com o animal — a
uma sorte de epifania às avessas das donas-de-casa de
Clarice Lispector, escritora presente numa frase do texto.
Mas a vez agora não é a da patroa da zona sul carioca,
mas a da "empregada doméstica cansada de seu
trabalho". A imagem do cão e seu desamparo, que é
também o dela, desencadeia a revisita ao passado
miserável que se mistura com o presente e dá à
personagem — dor, amar, mar, ar: "cabe um mar inteiro
em seu nome" — consciência do seu lugar subalterno na
história que se conta e, enfim, a leva "ao encontro
consigo mesma", num final surpreendente, como nos
melhores contos clariceanos.
Como toda narrativa épica que se preza — uma épica
dos excluídos, vale destacar —, peripécias,
acontecimentos singulares, aventuras extraordinárias
adquirem um tom fabular e encantatório que não diminui
o viés participante dos textos, antes o ressalta,
retomando, assim, a natureza ancestral das narrativas
orais de onde parecem provir. É o caso, por exemplo, de
O espírito aboni das coisas , que mistura palavras da
língua jarawara com o português, para narrar o périplo
de Tokowisa em busca das folhas e frutos da palmeira
de abatosi para curar sua mulher Yanice, grávida. Ou
então, em O que queima , onde Som-de-Pé se sente
morrer com as árvores, plantas e bichos.
Apesar das dificuldades que enfrentam ou justamente
por conta delas, cada uma das personagens de Vieira
Junior é movida pela "vontade de ser livre", mesmo se
essa vontade resulte em condenação à morte, caso do
poeta preso na Ilha do Medo, líder de um movimento
contra a ordem repressora e que aglutina todos aqueles
que fazem "de seus caminhos uma trilha para a
libertação dos outros", como está dito em A oração do
carrasco . Não é outro o desejo das imigrantes de Meu
mar (fé) , seja a mulher que vem de Dakar para a Bahia
no contêiner de um cargueiro com um filho no ventre e
na viagem perde o marido, seja a haitiana que com ela
divide o trabalho de vendedora ambulante, vivendo
ambas no estreito limite entre "fecundar a América" e
"perecer na América".
Todas essas histórias encontram, enfim, seu desfecho
ou suplemento no "manto da apresentação" de Arthur
Bispo do Rosário, comovente encerramento do belo livro.
A agulha que borda a palavra — do artista, do escritor,
do afrodescendente — vem de "tempos imemoriais" e
tece "um novo mundo para maravilhar o homem".
Domada como um "cavalo arisco", ela, a palavra, pulsa
viva no livro-manto que lhe devolve o fascínio original e
apocalíptico ao anunciar rosianamente "o beco para a
liberdade se fazer".
(In: Suplemento Pernambuco,
julho de 2021. Disponível em:
http://www.letras.ufmg.br/literafro/resenhas/ficcao/1593-itamar-vieira-ju
nior-e-doramar-sobre-uma-epica-dos-excluidos. Acesso em 11 nov.
2024. Adaptado.)
Pelo contexto, no trecho "atroa na noite da memória", a
palavra destacada pode ser substituída, sem prejuízo no
sentido, por: