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“O Cortiço é o romance em que Aluísio revela, de modo superior e inconfundível, dotes de pintor de agrupamentos humanos. Diante de nós, como o título indica, abre-se um estupendo microcosmos, a “cloaca social”, de que fala Vítor Hugo em Nossa Senhora de Paris e dela irrompe uma fauna asquerosa e vil, de répteis desvairados. Especialista em retratar almas malogradas, Aluísio passa em revista um bando de criaturas desesperançadas, atiradas à vida como enxurro, sem norte e sem futuro. Esmagadas pela fatalidade do meio e pelas taras hereditárias, entregues a uma luta fratricida pela sobrevivência, onde não há vencedores nem vencidos, vão-se rebaixando até a derradeira miséria física e moral.
E como se descesse na escala social seguindo a ordem da trilogia, o romancista pesquisa os confins do mundo suburbano, dos “humilhados e ofendidos”: em O mulato, era a burguesia maranhense a classe focalizada; em Casa de Pensão, a classe média inferior, vizinha do proletariado; e agora é o universo fechado de uma habitação coletiva, paredes meias com o prostíbulo e o hospital, povoada, em promiscuidade viciosa, de seres marginalizados pela cor, a falta de dinheiro ou a desgraça. Ou porque identificados desde a origem, ou por cederem ao ambiente, afogam-se na ignomínia a que os reduziu a marginalidade.
Contrastam com esse pano de fundo miserável dois representantes da classe burguesa, o vendeiro João Romão e o Miranda, “negociante português [tanto quanto o outro], estabelecido na rua do Hospício com uma loja de fazendas por atacado.” O contraponto das duas camadas sociais conduz o romance, numa interação dialética; os conflitos dos moradores do cortiço estão condicionados, na maior parte, ao fato de serem explorados pelo homem que possui dinheiro e, portanto, as casas de aluguel: João Romão. Defrontamse, assim, duas classes, movidas pelo ódio e pela ganância: é o homo lúpus hominis, em que o Deus dinheiro mais uma vez fornece a tábua de referência. Atrofiada a consciência moral pelo aviltamento (no caso dos moradores), e pela cupidez doentia de João Romão:
Desde que a febre de possuir se apoderou dele totalmente, todos os seus atos, todos, fosse o mais simples, visavam a um interesse pecuniário. Só tinha uma preocupação: aumentar os bens. Das suas hortas recolhia para si e para a companheira os piores legumes, aqueles que, por maus, ninguém compraria; as suas galinhas produziam muito e ele não comia um ovo, do que, no entanto, gostava imenso; vendiam-se todos e contentava-se com o resto das comidas dos trabalhadores. Aquilo já não era ambição, era uma moléstia nervosa, uma loucura, um desespero de acumular, de reduzir tudo a moeda.
o entredevoramento antropofágico torna-se lei. Devoração social. Exploração dos infelizes e humildes. Grito surdo e subterrâneo. Aluísio não toma partido (ao menos ostensivamente); descreve, analisa com a frieza do cirurgião que extirpa tumores malignos. À semelhança dos romancistas naturalistas em geral, parece encolher os ombros ante a evidência de que João Romão abusa impunemente dos moradores do cortiço. Determinismo. Mas um determinismo que não ousa declarar-se politicamente: a tese defendida por Aluísio move-se em território estético, ou científico, embora implique uma visão engajada do problema social. Sua patente predileção pelos humildes, talvez influência de Zola, não o arrastou a supor, idealisticamente, soluções utópicas para o impasse social. Detém-se na análise dos dramas coletivos, centrados na exploração do homem pelo homem, mas não aventura uma fórmula de resolvê-los, aliás como pedia o decálogo naturalista, de base positiva, científica e socialista.”
MOISÉS, Massaud. História da Literatura Brasileira. Cultrix, São Paulo: 2001. (p. 38-40)