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Q2442193
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Fúria no trânsito
Existe uma forma simples de avaliar o grau de evolução do ser humano. Basta observar dois sujeitos após
uma batida. Saem dos veículos arrebentando as portas. Olhares ferozes. Torsos inclinados para a frente.
Mãos crispadas. Batem boca. Bastaria mudar o cenário, trocar os ternos por peles e entregar um porrete
para cada um. Estaríamos de volta à pré-história. Poucas atividades humanas despertam tanto o espírito
selvagem como a guerra no trânsito.
Tenho um amigo de fala mansa, calmo e sensato. Outro dia estávamos no carro. Chuviscava. O suficiente
para que os carros entrassem numa luta desenfreada no asfalto. Cortadas súbitas. Buzinas. Ele passou a
costurar por todos os lados. Fomos ao Morumbi Shopping. Havia uma fila para o estacionamento vip (quem
almoça em alguns restaurantes de lá tem direito à manobrista gratuito).
- Um idiota está parado lá na frente - ele anunciou.
- Por que idiota? Você não sabe o motivo ... - comecei a dizer.
Não pude terminar a frase. Agarrei-me ao banco. Ele atirou o carro para a direita. O da frente fez o mesmo.
Para não bater, meu amigo jogou o seu sobre o canteiro. Veio a pancada. O pneu arrebentou. O veículo
parado mexeu-se, vagarosamente, e partiu. Meu amigo esbravejou. Trocou o pneu. Depois foi a uma borracharia, onde acabou brigando também. Passou o resto do dia num humor de cão. Telefonou:
- Tudo por culpa daquele imbecil!
Argumentei:
- Você não sabia o motivo de o carro estar parado. A pessoa podia estar se sentindo mal. Pense. Por causa
de alguém que não conhece, você quase amassou o carro, arrebentou seu pneu e está furioso. Como permite que um desconhecido faça tudo isso com você?
Silêncio sepulcral. Depois, ouvi um clique do telefone sendo desligado.
Costumo dirigir devagar. Quando vou para o Litoral Norte é uma tortura. A estrada só tem uma pista, com
muitos locais de ultrapassagem proibida. Tento me manter na velocidade exigida pelas placas. Adianta?
Alguém sempre gruda em mim. Volta e meia, quando ultrapassam, ouço me xingarem.
Nestes tempos politicamente corretos, já não se ouvem tantos gritos do tipo:
- Ô dona Maria, vá pilotar fogão! [...]
Soube de um rapaz que certa vez foi fechado numa grande avenida. Gritou:
- Safado, você vai ver!
Seguiu atrás, buzinando. O outro tentava fugir, ele perseguia. Deu uma superfechada, obrigando o carro a
parar. Saiu furioso, pronto para a briga. Aproximou-se. No banco do motorista estava uma senhora idosa,
tremendo de medo. Ele caiu em si.
- Parecia que eu estava em um filme, me assistindo.
Gaguejou. Pediu desculpa. Partiu.
No dia seguinte, vendeu o carro.
- Não confio em mim mesmo ao volante. Eu me torno outra pessoa. Prefiro não dirigir.
Claro que não é uma receita para todo mundo. Para ele, funcionou. Anda de ônibus, táxi ou metrô. Sentese feliz. Como se tivesse abandonado a pré-história e, finalmente, ingressado na civilização.
Walcyr Carrasco
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