Leia o trecho que segue: "Retornou com o semblante desanuvi...
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Ano: 2024
Banca:
FURB
Órgão:
Prefeitura de Blumenau - SC
Prova:
FURB - 2024 - Prefeitura de Blumenau - SC - Professor de Ciências |
Q3181349
Português
Texto associado
Escrever as emoções: o sentido de dar palavras à
ebulição interior
Julián Fuks
Às vezes sinto que minha filha tem escrito mais do que
eu, ou tem sido mais verdadeira no que escreve. Mais
imediata, talvez, no desembaraço de seus sete anos de
idade. Criou agora seu caderno de sentimentos, algo
como um diário ilustrado onde ela registra cada emoção
forte que a acomete. Eu olho a urgência com que ela
corre para o caderno, o vigor com que empunha o lápis,
a concentração com que passa a ignorar tudo o que a
cerca. Nada mais lhe importa nesse momento, a escrita
toma toda a sua existência, e assim cada emoção
turbulenta de origem se faz satisfação e leveza.
Escreveu algo de essencial, traçou em linhas exatas seu
sentimento, deu a uma vaga abstração sua forma
concreta. Quisera eu escrever dessa maneira.
Seu caderno se inicia com a mais simples e expressiva
das páginas. Tutu triste, vê-se em letras pequenas, e
embaixo seu autorretrato de olhos pesados e duas
lágrimas gordas sobre as bochechas. Segue ainda por
afetos límpidos: Tutu animada, raivosa, impaciente,
sonolenta, Tutu sem acreditar no que está acontecendo,
neste caso um desenho de si boquiaberta e de olhos
vidrados. Depois disso ela parece ter percebido a
necessidade de explorar as causas subjacentes aos
sentimentos, como Balzac alguma vez decidiu dar as
raízes ocultas de cada fato. Passou a anotar coisas
como "Tutu empolgada com o acampamento", e "Tutu
aliviada porque um homem horrível não ganhou as
eleições".
"Escrever é procurar entender, é procurar reproduzir o
irreproduzível, é sentir até o último fim o sentimento que
permaneceria apenas vago e sufocador". Leio essa frase
em Clarice Lispector e acredito entender algo sobre
minha filha, e algo sobre mim. Clarice emenda que talvez
por isso tome tantos anos entre um verdadeiro escrever
e outro, ainda que se empunhe o lápis todos os dias por
uma vida inteira. Para mim dá-se o mesmo, alinhavo
palavras sempre que me visita o caderno de
sentimentos. Ali, se o tivesse, talvez me fosse mais
sincero dizer: "Julián embevecido de admiração por sua
filha."
Não posso, no entanto, encerrar meu comentário sobre o
caso nesse ponto, porque há um acontecimento recente
muito mais digno de nota do que tudo isso que contei.
Lê-se numa das páginas do caderno: "Tutu infeliz porque
a Peps não está sendo uma boa pessoa". Não sei qual
conflito a levou a registrar palavras tão acerbas contra a
irmã, decerto alguma dessas pequenezas que
diariamente trovejam na relação entre as duas,
precedidas e sucedidas de risos desabridos e abraços enérgicos.
Penélope não deixou passar sem vingança a acusação
insolente. Enquanto folheava o caderno da irmã e
tentava decifrar as palavras escritas com que já começa
a se familiarizar — começa a se irmanar, eu poderia
dizer — acabou calhando de rasgar uma folha, digamos
sem querer. Foi tal a indignação da irmã com o gesto
destrutivo que me pareceu razoável mostrar a ela a
página em que Tulipa descrevera sua decepção primeira
e indagar com veemência: é isso o que você deseja?
Essa é a emoção que você quer provocar na sua irmã, a
infelicidade? Não seria preferível criar nela uma
impressão mais positiva, e constar numa página que
falasse de entusiasmo, carinho, alegria?
Penélope então me encarou com olhos indecifráveis,
ainda um tanto severos, e respondeu com segurança e
presteza: claro que sim, dou um jeito nisso. Correu até
seu quarto, fechou-se ali por alguns minutos, criou entre
os que a esperávamos um momento palpável de
apreensão e suspense. Retornou com o semblante
desanuviado, plena de satisfação e leveza. Numa folha
avulsa ela desenhara a irmã com seu inseparável
caderninho nas mãos, com um largo sorriso a lhe cruzar
o rosto inteiro, e delineara na ortografia atrevida de seus
quatro anos: "Tutu feliz porque a Peps se comportou
bem."
Não pude senão me espantar com sua intrepidez, com
sua decisão de se fazer autora da página que gostaria
de ver. Sua sagacidade buscara um atalho: não era
preciso suscitar na irmã o devido sentimento, a ficção
poderia suprir bem esse seu desejo, e ainda expor o
ridículo da bronca que o pai lhe dera. Ela é uma escritora
diferente de nós, foi o que pensei, talvez mais inventiva,
mais livre, menos submissa às insignificâncias da
realidade e às suas emoções correspondentes. E ao
pensá-lo entendi que, se tivesse afinal meu próprio
caderno de sentimentos, também anotaria em página
nova minha profunda admiração por ela.
Um último ato encerra a história, mostrando as
intrincadas relações entre ficção e realidade, ou o modo
como a escrita das emoções pode alterar nossa
existência no mundo, cuidando estranhamente de nos
aproximar dos outros. Tulipa viu a página que a irmã
depositara sobre a mesa, e sentiu que um sorriso largo
lhe cruzava o rosto inteiro, sentiu uma comoção que lhe
dominava o peito. Correu nesse mesmo instante para
registrar o sentimento novo em seu caderno, para criar
com suas mãos a exata correspondência com o desenho
da irmã. Deu assim testemunho de uma ficção que se fez
emoção tão verdadeira que foi capaz de coincidir com a
vida. Também assim eu desejaria a minha escrita.
Disponível em:
https://www.uol.com.br/ecoa/colunas/julian-fuks/2024/10/12/escrever-as
-emocoes-o-sentido-de-dar-palavras-a-ebulicao-interior.htm. Acesso
em 18 out. 2024.
Leia o trecho que segue:
"Retornou com o semblante desanuviado, plena de satisfação e leveza. Numa folha avulsa ela desenhara a irmã com seu inseparável caderninho nas mãos, com um largo sorriso a lhe cruzar o rosto inteiro, e delineara na ortografia atrevida de seus quatro anos: 'Tutu feliz porque a Peps se comportou bem.'"
A respeito dos verbos em destaque:
"Retornou com o semblante desanuviado, plena de satisfação e leveza. Numa folha avulsa ela desenhara a irmã com seu inseparável caderninho nas mãos, com um largo sorriso a lhe cruzar o rosto inteiro, e delineara na ortografia atrevida de seus quatro anos: 'Tutu feliz porque a Peps se comportou bem.'"
A respeito dos verbos em destaque: